quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

...


"Somente aquelas pessoas que conseguem ficar sozinhas são capazes de amar, de compartilhar, de penetrar no mais profundo âmago da outra pessoa - sem possuí-la, sem se tornar dependente dela, sem criar "o outro", reduzindo-o a uma coisa, e sem se viciar no outro.
Elas permitem ao outro total liberdade porque sabem que se ele se for embora, elas continuarão sendo tão felizes quanto são agora. A felicidade delas não pode ser tirada pelo outro porque não foi dada por ele."

..umas palavras que se cruzaram no meu caminho este dia..
Para um verdadeiro renascer da luz interior.

* brilhem

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Imagem fantasma


"És a minha imagem fantasma. Kaponhe ua Katua. És como um sonho espécie de regresso inacabado desejo inconsciente eu preferia varrer-te da memória porquê tão longe porquê tão abraçados. Sonhos que me fazem sofrer quando regresso do fundo do fundo e de dentro de mim ideia perfeita do êxtase do amor sensação permanente só tocar ao de leve e já não estou em mim estou em ti e já não estás em ti estás em mim os dois flutuando os dois um só no ar espaço azul fluído transparente. Muhamba ua tumuari. Contra os sonhos. Contra as imagens fanstasmas perpétuas recorrentes. Contra o outro lado de ser que não domino. Descansar por uns tempos das trevas das procuras das interrogações. Viver. (...) Não pensar, porque pensar em excesso enfraquece o corpo e a alma."


* Y. K. Centeno
As Palavras Que Pena in Três Histórias de Amor

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

As Palavras Que Pena


"A comunhão dos santos. Em primeiro lugar descobre-se a linha e o ponto. E só depois de se terem esgotado todas as possibilidades é que a linha se enrola suave sobre si mesma cheia de invenção e o ponto cresce e alarga-se formando assim o círculo. Com linhas com pontos e finalmente com círculos tem-se o mundo na mão. É preciso apenas descobri-lo, persegui-lo, possuí-lo. E tem-se o mundo na mão. Regular os espaços. Ou melhor: regular os tempos e os espaços. Cria-se a terra com o seu recheio de seres e de coisas. Pequenas constelações isoladas umas das outras. Sem comunicação. E o que é pior - sem nada a comunicar. (...)
De vez em quando há um homem. Parece conduzir-nos. Mas não há nada atrás dele, ninguém o segue. E de vez em quando uma estrela tem pena e aproxima-se, mas encadeia-o com a sua luz excessiva e ele perde-se mais ainda, perde-se até dos próprios passos. A estrela no fundo é inútil, não serve para nada. (...)
Quando na floresta as árvores são vivas e se agitam e eu posso percebê-las. Sopram ventos da terra. Ventos fundos que sobem das raízes e se espalham nos ramos e nas folhas e as árvores estremecem como se tivessem sido acordadas nesse instante e agitam-se toda a noite e são vivas. Adivinho o mistério, cheio de seiva, cheio de frutos maduros. Adivinho o meu sonho idêntico ao sonho delas. Todos os sonhos provêm do mundo a que pertencemos. Do verdadeiro mundo. Surgem inesperadamente, desgarrados na noite, às vezes por engano sonhamos sonhos dos outros e às vezes por engano não chegamos sequer a reconhecer os sonhos que são nossos. Seguimos sempre no escuro. Mas seguimos. (...)
Com a lua não se segue no escuro. É-se conduzido por dentro, sem reflexão, sem problemas. Mas só enquanto há lua."
*
* Y. K. Centeno
* As Palavras Que Pena

domingo, 3 de outubro de 2010

Após Li Po


"De onde vens? Aonde vais?
O mundo não é como o vês -
Tenho olhos diferentes dos teus
*
E atravesso o teu caminho como uma sombra.
Do que é que precisas realmente?
Que peso é esse sobre os teus ombros?
Quem te deu esse sorriso complacente?
*
Conheço um tipo diferente de reino
Onde tudo o que transporto é o céu e o momento
E as pessoas são como são, como eu,
E as aves, as abelhas e as flores são iguais.
*
Bobo, menestrel, vagabundo - sou tudo isso
Mas o meu segredo é que não sou ninguém
E a brisa que sopra através de mim é a brisa
E o meu bafo a desaparecer no vento.
*
O que dou, dou. É tudo o que tenho -
E o milagre é que é suficiente."
*
*
* O Viajante (56) * Lu *
in I Ching - O Livro das Mutações
Martin Palmer / Jay Ramsay / Zhao Xiaomin

terça-feira, 21 de setembro de 2010

..estradas da vida..


"Onde os meus pés estiverem,
Aí estará a minha raíz para me sustentar,
Para me erguer e levantar nas asas do vento,
Da chuva e do sol.
*
Quando o meu chão se abala e estremece,
É a minha raíz sacudindo os galhos, os frutos e os talos..
Que só a lucidez já me quis..
*
E quando o meu ódio é frio, e o meu amor é ardente,
São as asas da vida equilibrando os planos..
E quando a minha voz faz questão de dar o meu segredo,
E o meu coração revelar os meus desejos,
São os palcos da vida levantando os panos..
*
Aonde a razão me levar, sob o chão estará a minha raíz,
para me fortalecer, me fortificar, romper, perdoar ou calar,
E se um dia o meu sol se esconder,
É que a noite também vive em mim,
E a lua virá para alternar as minhas marés,
E as estrelas guiarão os meus pés..
*
E quando o que em mim é sagrado se torna profano,
É que,
Anunciada a vida,
Há um querer mais cigano,
É que a luz dessa noite me quer com mais clareza,
E nas veias do mundo
Eu sou sangue que alimenta, eu sou coragem!
*
As estradas da vida são uma eterna coragem,
E aí se revela a minha natureza.."
*
*
Ana Cunha - Fontanelas - Verão 1991
in O Vento e a Lua, História de uma Vagabunda

domingo, 19 de setembro de 2010

Elegias de Duíno


"Quem se eu gritasse, me ouviria entre as hierarquias dos anjos?
E dado mesmo que me tomasse um deles de repente em seu coração, eu sucumbiria
ante sua existência mais forte.
Pois o belo não é senão o início do terrível, que já a custo suportamos,
e o admiramos tanto porque ele tranquilamente desdenha destruir-nos.
Cada anjo é terrível.
E assim me contenho pois, e reprimo o apelo de obscuro soluço.
*
Ah! A quem podemos recorrer então?
Nem aos anjos, nem aos homens, e os animais sagazes logo percebem que não estamos muito seguros no mundo interpretado.
Resta-nos talvez alguma árvore na encosta que diariamente possamos rever.
Resta-nos a rua de ontem e a mimada fidelidade de um hábito, que se compraz connosco e assim fica e não nos abandona.
Ó e a noite, a noite quando o vento cheio dos espaços do mundo desgasta-nos o rosto - para quem ela não é / sempre a desejada, levemente decepcionante, que para o solitário coração se impõe penosamente.
Ela é mais leve para os amantes?
Ah! Eles escondem apenas um com o outro a própria sorte.
Não o sabes ainda? Atira dos braços o vazio para os espaços que respiramos;
talvez que os pássaros sintam o ar mais vasto num vôo mais íntimo.
*
Sim, as primaveras precisavam de ti.
Muitas estrelas esperavam que tu as percebesses.
Do passado erguia-se uma vaga aproximando-se, ou ao passares sob uma janela aberta, um violino se entregava.
Tudo isso era missão. Mas a levaste ao fim?
Não estavas sempre distraído pela espera, como se tudo te ansiasse a bem amada?
(onde queres abrigá-la então, se os grandes e estranhos pensamentos entram e saem de ti e muitas vezes ficam pela noite.)
Se a nostalgia te dominar, porém, cantas as amantes; muito ainda falta para ser bastante imortal seu celebrado sentimento.
Aquelas que tu quase invejaste, as desprezadas, que tu achaste muito mais amorosas que as apaziguadas.
Começa sempre de novo o louvor jamais acessível;
Pensa: o herói se conserva, mesmo a queda lhe foi apenas um pretexto para ser: o seu derradeiro nascimento.
As amantes, porém, a natureza exausta as toma novamente em si, como se não houvesse duas vezes forças para realizá-las.
Já pensaste pois em gaspara Stampa o bastante para que alguma jovem, a quem o amante abandonou, diante do elevado exemplo dessa apaixonada, sinta o desejo de tornar-se como ela?
Essas velhíssimas dores afinal não se devem tornar mais fecundas para nós?
Não é tempo de nos libertarmos, amando, do objecto amado e a ele tremendo resistirmos como a flecha suporta à corda, para, concentrando-se no salto Ser mais do que ela mesma?
Pois parada não há em / parte alguma.
*
Vozes, vozes.
Escuta, coração como outrora somente os santos escutavam:
até que o gigantesco apelo levantava-os do chão;
mas eles continuavam ajoelhados, inabaláveis, sem desviarem a atenção: eles assim escutavam.
Não que tu pudesses suportar a voz de Deus, de modo algum.
Mas escuta o sopro, a incessante mensagem que nasce do silêncio.
Daqueles jovens mortos sobe agora um murmúrio em direcção /a ti.
Onde quer que penetraste, nas igrejas de Roma ou de Nápoles, seu destino não falou a ti, / tranquilamente?
Ou uma augusta inscrição não se impõs a ti como recentemente a lousa em Santa Maria Formosa.
Que eles querem de mim?
Lentamente devo dissipar a aparência de injustiça que às vezes dificulta um pouco o puro movimento de seus espíritos.
*
Certo, é estranho não habitar mais terra, não mais praticar hábitos ainda mal adquiridos, às rosas e outras coisas especialmente cheias de promessas.
Não dar sentido do futuro humano; o que se era, entre mãos infinitamente cheias de medo.
Não ser mais, e até o próprio nome deixar de lado como um brinquedo quebrado.
Estranho, não desejar mais os desejos.
Estranho, ver tudo o que se encadeava esvoaçar solto no espaço.
E estar morto é penoso e cheio de recuperações, até que lentamente se divise um pouco da eternidade.
- Mas os vivos cometem todos o erro de muito profundamente distinguir.
Os anjos (dizem) não saberiam muitas vezes se caminham entre vivos ou mortos.
A correnteza eterna arrebata através de ambos os reinos todas as idades.
Sempre consigo e seu rumor as sobrepuja em ambos.
*
Finalmente não precisam mais de nós os que partiram cedo, perde-se docemente o hábito do que é terrestre, como o /seio materno suavemente se deixa, ao crescer.
Mas nós que de tão grandes mistérios precisamos, para quem do luto tantas vezes o abençoado progresso se origina - : poderíamos passar / sem eles?
É vã a lenda de que outrora, lamentando Linos, a primeira música ousando atravessou o árido letargo, que então no sobressaltado espaço, do qual um quase / divino adolescente escapou de súbito e para sempre, o vazio entrou naquela vibração que agora nos arrebata e consola e ajuda?"
*
*
* Rainer Marie Rilke
* Elegias de Duíno
* (imagem de Alex Grey)

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Cartas



"Quando o vento se levanta e passa, tua cabeça adormecida põe-se a brilhar. Em redor dela um halo de sombra onde a minha mão entra, vagarosamente, pedindo-te um sinal.
Procuro o rosto com os dedos afiados pelo desejo. Toco a alba das pálpebras que, de súbito, se abrem para mim.
Um fio de luz coalha na saliva do lábio.
Ouvimos o mar, como se tivéssemos encostado a cabeça ao peito um do outro. Mas não há repouso nesta paixão.
O dia cresce, sem luz - e os pássaros soltam-se do pólen dos sonhos, embatem contra os nossos corpos.
Nada podemos fazer.
Um risco de passos ensanguentados alastra pelo chão da cidade. A noite cerca-nos, devora-nos. Estamos definitivamente sozinhos.
Começamos, então, a imitar a vida um do outro. E, abraçados, amamo-nos como se fosse a última vez...
O tempo sempre esteve aqui, e eu passei por ele quase sempre sozinho.
No entanto, recordo: deixaste-me sobre a pele um rasgão que já não dói. Mas quando a memória da noite consegue trazer-te intacto, fecho os olhos, o corpo e a alma latejam de dor.
Dantes, o olhar seduzia e matava outro olhar. Agora, odeio-te por não me perteceres mais. Odeio-te. Abro os olhos. Regresso ao meu corpo e odeio-te. E quem sabe se no meio de tanto ódio não te perdoaria - mas ambos sabemos que o perdão não existe.
Se fugias, perseguia-te. Mas o olhar começava a cegar. Sentia-te, já não te via. E o pior é que o tacto também esqueceu, rapidamente, a sensualidade da pele e o calor do sexo. O rosto aprendido de cor.
Hoje, tudo se sobrepõe. Nomes, rostos, gestos, corpos, lugares... um montão de cinzas que me deixaste como herança.
Não devo perder tempo com o ciúme. A paixão desgastou-me. E nunca houve mais nada na minha vida - paixão ou ódio.
Só isto: se me aparecesses agora, tenho a certeza, matava-te."
*
*
* Al Berto
* Cartas, in O Anjo Mudo

domingo, 22 de agosto de 2010

Começámos como um mineral..



"Começámos
como um mineral,
Irrompemos na vida vegetal e no estado animal,
como seres humanos, em seguida,
e esquecemos sempre os nossos estados anteriores,
salvo no início da Primavera,
quando nos recordamos um pouco
de ser verdes mais uma vez.
É assim que um jovem se volta para um professor.
É assim que um bebé se inclina para o seio,
sem saber o segredo do seu desejo,
mas voltando-se por instinto.
A humanidade é conduzida ao longo de um percurso evolutivo
através da sua migração de inteligências.
E apesar de parecer que dormimos,
há uma vivacidade interior
que direcciona o sonho.
Com o tempo irá assombrar-nos de volta
para a verdade de quem somos."
*
*
* Rumi, Século XIII
* imagem de Alex Grey

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Fértil Lua Caminho


"Põe-te a caminho com o pé certo
Parte da melhor maneira e não haverá problemas
*
é essa a essência
*
Chegou o momento de agir - agora chefia e segue...
Segue a água até ao rio, como o rio,
Segue o caminho que indicas, segue-o -
*
Fértil, Lua, Caminho: diz
*
Segue o caminho que se abre, o caminho primaveril,
Ao luar da lua e a luz do amor,
Segue o teu coração e segue na escuridão
Guiado como és: a orientação está no teu caminho
*
Neste reverso lua-sombra-prata do dia"
*
*
* Continuação (17) * Sui *
in I CHING - O Livro das Mutações
Martin Palmer / Jay Ramsay / Zhao Xiaomin

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Aprendiz de Viajante



"Um dia li num livro: «Viajar cura a melancolia».
Creio que na altura, acreditei no que lia. Estava doente, tinha quinze anos. Não me lembro da doença que me levara à cama, recordo apenas a impressão que me causara, então, o que acabara de ler.
Os anos passaram - como se apagam as estrelas cadentes - e, ainda hoje, não sei se viajar cura a melancolia. No entanto, persiste em mim aquela estranha sensação de que lera uma predestinação.
A verdade é que desde os quinze anos nunca mais parei de viajar. Atravessei cidades inóspitas, perdi-me entre mares e desertos, mudei de casa quarenta e quatro vezes e conheci corpos que deambulavam pela vasta noite... Avancei sempre, sem destino certo.
Tudo começou a seguir àquela doença.
Era ainda noite fechada. Levantei-me e parti. Fui em direcção ao mar. Segui a rebentação das ondas, apanhei conchas, contornei falésias; afastei-me de casa o mais que pude. Vi a manhã erguer-se, branca, e envolver uma ilha; vi crepúsculos e noites sobre um rio, amei a existência.
Dormia onde calhava: no meio das dunas, enroscado no tojo, como um animal; dormia num pinhal ou onde me dessem abrigo, em celeiros, garagens abandonadas, uma cama...
E quando regressei, regressei com a ânsia do eterno viajante em mim.
Hoje sei que o viajante ideal é aquele que, no decorrer da vida, se despojou das coisas materiais e das tarefas quotidianas. Aprendeu a viver sem possuir nada, sem um modo de vida. Caminha, assim, com a leveza de quem abandonou tudo. Deixa o coração apaixonar-se pelas paisagens enquanto a alma, no puro sopro da madrugada, se recompõe das aflições da cidade.
A pouco e pouco, aprendi que nenhum viajante vê o que outros viajantes, ao passarem pelos mesmos lugares, vêem. O olhar de cada um, sobre as coisas do mundo, é único, não se confunde com nenhum outro.
Viajar, se não cura a melancolia, pelo menos purifica. Afasta o espírito do que é supérfluo e inútil; e o corpo reencontra a harmonia perdida - entre o homem e a terra.
O viajante aprendeu, assim, a cantar a terra, a noite e a luz, os astros, as águas e a treva, os peixes, os pássaros e as plantas. Aprendeu a nomear o mundo.
Separou com uma linha de água o que nele havia de sedentário daquilo que era nómada; sabe que o homem não foi feito para ficar quieto. A sedentarização empobrece-o, seca-lhe o sangue, mata-lhe a alma - estagna o pensamento.
Por tudo isto, o viajante escolheu o lado nómada da linha de água. Vive ali, e canta - sabendo que a vida não terá sido um abismo, se conseguir que o seu canto ou estilhaços dele, o una de novo ao Universo.
*
*
* Al Berto
in O Anjo Mudo

sábado, 24 de julho de 2010

Dizer-te

"Carrego em mim uma palavra imensa. É uma palavra avassaladora, uma palavra devastadora. É uma palavra que não sei pronunciar. É uma palavra para ti. Entre nós fica o silêncio que essa palavra não consegue transpor. Vivemos nesse silêncio, um espaço contido e vazio, o imensurável árido em que duas pessoas não conseguem falar. E nem eu precisaria que falasses, bastaria que ouvisses esta palavra que te quero dizer. Bastaria essa única palavra erguer-se singular na minha voz, atravessar o silêncio, escoar-se na treva funda dos teus ouvidos. Aí partilharíamos o segredo que todas as coisas encerram no âmago de si. Aí, tu serias eu e eu apenas um pouco mais de ti. Teríamos esta palavra sem nome na qual seríamos um só. Eu quero. Eu juro.
Entras e sais da minha vida numa repetição infinita. É um ciclo tresloucado, inevitável. Tal como a água que nasce entre as pedras e demora muito a tornar, na certeza, porém, que tudo se repetirá, uma e outra vez, uma e outra vez. Há entre nós este silêncio intransponível que nos vai ficando, que nos vai minando, soterrando, preenchendo com as raízes do seu vazio. E eu a sentir. E tu a partires, sempre como se fosse para nunca mais voltares. E eu quero dizer-te. Eu quero. Eu juro. Quero dizer-te de uma vez por todas esta palavra que me aperta, que me queima, que me mantém acordado no sono e em tremura na vigília. Eu quero. Eu juro. Porque um dia partirás para sempre. Porque um dia o silêncio será inquebrável, de tal forma espesso que nenhuma palavra o saberá cortar. E esta palavra é papel, é vidro partido, é lâmina reluzente. Esta palavra é tudo e é nada pois é uma vida vivida, imaginada, sofrida. Que não se aprende nem se ensina. É uma palavra que me cresce de dentro. Que me tem crescido a cada instante, como uma infiltração subterrânea, como uma obsessão, como uma traça insaciável que me rumina o corpo e a mente noite e dia, sem parar, sem parar. É como o som metódico e louco de uma máquina de costura que trabalha incansável. Eu ouço o carrinho girar no carreto, os pés no vai e vem furibundo do pedal, a agulha infalível ascendendo e martelando o pano aparado por duas mãos no recorte do traço. É incessante. Eu sou, eu existo no plano informe e inominável dessa palavra. E eu quero encostar os meus lábios à tua orelha e sussurrar-te esta larva, esta palavra bicho, casulo, esta doença raiada pela minha loucura que nos unirá para sempre à volta de um mesmo olhar. Quero deixá-la deslizar para dentro de ti como a saliva breve que se sorve de um beijo. Eu quero. Eu juro.
Trago comigo esta palavra imensa. É uma palavra maior que eu ou maior que tu. E eu quero. Eu preciso. Eu desejo oferecer-te esta palavra. Eu juro"
*
*
Carlos Geadas
Autor do livro, os dias de um homem banal
*
* imagem: Silence, Henry Fuseli

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Espíritos Livres


"Os espíritos livres reconhecem-se pelo olhar porque a luz que brilha nos seus olhos é a mesma que brilha nas estrelas, não resistem a mostrar aos outros as constelações dos céus e.. dançam juntos quando chega a luz da madrugada.
Um espírito livre olha nos olhos de um desconhecido, fala de amor à primeira vista, de almas gémeas, defende ideias que parecem ridículas, chora mágoas e decepções antigas, alegra-se com novas descobertas, diverte-se, brinca, é irreverente, faz perguntas inconvenientes, diz tolices, disfarça-se de louco quando sofre de lucidez e.. dança com os seus companheiros.
Já agiu muitas vezes incorrectamente, já traiu e mentiu muitas vezes, já trilhou caminhos que não eram os seus e perde-se, vezes sem conta, em labirintos até recuperar novamente o seu caminho, já disse sim quando queria dizer não, já feriu os que mas ama, já foi a festas e procurou a paz, a esperança e o amor na música, nos lugares, nos espaços, nos outros, nas drogas..
Um espírito livre cai nestes abismos muitas vezes, mas quando reúne as suas forças para sair, descobre que é dentro de si que encontra o amor, a paz, a luz.. então, vive a esperança de ser melhor do que é.. e dança enquanto caminha.
Senta-se num lugar tranquilo da floresta e procura não pensar em nada: descansa, contempla, presta atenção à sua respiração, ao voo do pássaro, ao aroma da flor e, conectando-se com a alma do Universo, anda suavemente, sente que participa na dança universal e.. flutua enquanto dança.
No caminho que livremente escolheu, sabe também que tem de lidar com gente que não presta atenção às pequenas coisas, que não sabe que tudo é uma coisa só, que cada acção nossa afecta todo o planeta, que cada pensamento nosso se estende muito para além da nossa vida, que cada minuto pode ser uma oportunidade para nos transformarmos, que estamos no mundo não para combater o mal ou condenar e julgar o outro e.. dança enquanto ama.
Mas porque é um peregrino, um caminhante em busca espiritual, um mendigo do amor, um espírito livre senta-se à roda da fogueira e dá as boas vindas aos estranhos. Usa a sua intuição e não desespera quando o acham louco ou a viver um mundo de fantasia. Não tem certezas, mas sabe que nem todos os caminhos são para todos os caminhantes e.. ensaia novos compassos de dança.
E segue em frente e faz pontes entre o céu e a terra, entre a vida profana e a espiritualidade a que se aspira, entre o visível e o invisível, entre o compreensível e o indizível e então, pouco a pouco, outros se aproximam, reúnem-se e iniciam o seu caminho à volta dos seus ritos, símbolos e mistérios.. e dançam à volta da fogueira.
Um espírito livre conhece o silêncio como a linguagem do indizível, do que não se explica, apenas se sente. Conhece também o poder das palavras e não é tagarela. Não quer parecer ser, ele simplesmente é."
*
*
um texto que me veio parar às mãos há uns anos..
Infelizmente de autor desconhecido (ou ainda por conhecer.)
P.L.U.R.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Quem Se Eu Gritar


"Não tenho remorsos e não lamento nada. Só é pena que tu não tenhas estado à minha altura para transformar o nosso encontro em mais do que uma história banal. Mas este problema é teu, não deve interessar-me, embora me humilhe quando penso. Procurei-te tanto nas noites da floresta. Encontrei-te e perdi-te lutando contra o tempo entre a terra e o mar e entre as paredes frias do quarto branco e preto.
A minha vida, que me entregaste inteira e de longe, e em que eu só reparei no fim, quando já vinha sentada no comboio, a vomitar quilómetros de morte entre nós.
(...)
Quanto tempo durou o nosso encontro? Um só momento ou uma vida inteira? Eu estava morta e agora parece-me que vivo novamente. Mas não me deixo prender nos laços de mim própria. Eu sei que entre nós está tudo acabado, porque de facto nada chegou sequer a começar. Mas já não me interessa. Quando eu amar alguém será fora do tempo, com todo o tempo livre para nós, alguém que fique em mim longamente entre o sono e a consciência morna, alguém em quem eu fique. O meu amor será extenuante. Será doce e profundo mas extenuante. Tu já não tens idade. O teu coração velho e o teu corpo usado não aguentam mais do que o peso e a forma e a sensação normal ou desviada de uma leve aparência. Nas horas de amor não é um ritmo de sangue que bate dentro de ti. É um relógio. O teu amor cansado não vem antes de tempo. E o teu tempo é urgente. E o verdadeiro tempo corre ao lado, e a música desfaz-se nele e todas as sensações se desfazem com ele. E ele próprio desfaz-se na memória.
(...)
Amo as noites da rua, o ar frio que me corta os lábios e as mãos. E o mistério dos outros bate em mim, e os outros passam e passam ao meu lado, sociáveis, bem vestidos, muito íntimos, excessivamente íntimos, tão íntimos que me empurram para o lado e me passam por cima. A maravilhosa cidade que não muda, e não diz como é. Onde o amor agoniza a cada canto e renasce mais longe.
O amor.
É verdade, o amor que me falta. Concretamente é isso que me falta. Um grande amor para as margens do rio e para as ruas brancas da cidade. Um grande amor de dia e de noite. Um grande amor selvagem e macio, e ao mesmo tempo frio, leve e frio, como o ar que respiro de noite nas ruas da cidade.
Enfim, um grande amor que eu já não tenha usado."
*
Y. K. Centeno
Quem Se Eu Gritar.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

As Palavras Que Pena


"Como pode o amor já ter acontecido e não acontecer? Esgotamento. O cérebro espremido como uma esponja. Cheio de buracos ainda húmidos ainda feridos pela presença de ideias que não existem mais. Vidasimulação, vidaprolongamento. Estado que se torna obcecante. Pensa-se nisso todo o dia. E quando os ponteiros do relógio dão a última volta pensa-se nisso toda a noite. E o tempo corre deitado ao nosso lado enquanto estamos deitados, ao nosso lado na cama em linha recta. E não nos toca. Ficamos pela primeira vez devido ao esgotamento isolados do tempo retirados do tempo formando pequenas unidades solitárias. (...) Mas o tempo. O tempo que passava, a ideia de desistir a insinuar-se, ter nas mãos uma série de fragmentos que não encaixavam uns nos outros, no fundo não ter começado não ter acabado nada. Desistir. Vou chegar sozinha ao fim da vida. A solidão cresceu dentro de mim, ocupa-me por dentro, estou presa à solidão do que procuro e não sei o que é e não vem ter comigo embora eu espere e pense, todas as noites penso antes de adormecer e enquanto penso rezo e tenho às vezes fé mas não dura o tempo suficiente. O tempo. Ir mais longe. Mesmo quando se chega ao fim. Ir mais longe, não parar nunca. Viagens em redondo como os círculos que o tempo abre e fecha nos relógios. Estou presa num relógio estou metida direita num ponteiro e quando julgo que os círculos acabam outros círculos nascem maníacos viciosos repetidos. Vão nascendo de mim. E sobre tudo isto a consciência. E o esgotamento. A noite da chegada, como que a desistir."
*
* Y. K. Centeno
As Palavras Que Pena

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Alegria de Viver!


"Saber viver! Nestas duas palavras reside um enorme repto que se nos coloca em cada segunda da jornada humana. Compreender o Ser, decifrar o magno Existir, Pensar autonomamente - apercebendo-nos um pouco do que somos e do que imaginamos rodear-nos - e Agir com a maior correcção possível, de uma forma altruísta, boa, justa, amorosa e (pessoalmente) desinteressada. Eis aqui o sublime Desafio da Vida.
No entanto, sobre isto não iremos, provavelmente, encontrar explicações nos livros da escola, nas sebentas académicas, ... ou nos manuais de instruções. Nós vamo-nos construindo e aperfeiçoando, desde o primeiro sopro de vida que nos alentou e incita a caminhar. E tudo é caminho (Fernando Pessoa). Só que o caminho faz-se caminhando. Na melhor, simplesmente na melhor, direcção. Os momentos de felicidade poderão ser enganadores para quem se apercebe que sempre existe algo mais. A tristeza e a dor alertam frequentemente a persona. Mas estas podem ser redentoras. E então, da anima, vem-nos um lampejo, um momento maior. Para entendermos o que é a alegria interior. Assim começamos a perceber a magia de viver.
Procurar um pleno sentido para o nosso percurso, no limiar do tempo em que aqui estamos... Do Ser ao ter Consciência do que se é, da Amizade ao Amor, da Tristeza à Alegria, do Imanente ao Transcendente, do Místico ao Oculto, da Loucura ao Sonho, ..., do Tempo, da Morte, do Eterno, da Vida. Questões atravessam-nos, interessam-nos, deixam-nos curiosos, remetem-nos aos domínios dos valores, atitudes, crenças, teorias, práticas, culturas ou ideologias. Levam-nos a indagar a mente, auscultar o coração e ponderar o comportamento.
O que nos permite aqui Estar? A matéria de que somos feitos é, em grande medida, lapidada por lágrimas, nos momentos mais difíceis e dolorosos, naqueles que melhor nos permitem induzir - pela inspiração e maturação no fogo redentor que em nós (ou de nós) irrompe, temperado pelo sopro da lucidez, do discernimento e do amor - o que antes não tivéramos visto - com olhos de ver -, por falta de querer ou atenção, por incapacidade ou, simplesmente, porque não era ainda o momentum.
Da mágoa que nos cobre ao júbilo interior que nos invade, das lágrimas amarguradas ao fogo que permite crescer... o mundo é belo mas só os nossos olhos o podem tocar e só o nosso querer o pode revelar, em cada segundo irrepetível, único. Assim possa a Vida ser sentida, respeitada e dignificada. E possa a jóia ainda oculta ser progressivamente revelada. Com alegria.
Tempus fugit! Mas vale sempre a pena tentar, mais uma vez.
Teremos, finalmente, tempo e chama para acordarmos o sentido mais profundo do projecto humano que jaz, adormecido, no fundo de cada um de nós? (António Alçada Baptista)"
*
*
* Abílio Oliveira
in BIOSOFIA (http://www.biosofia.net/), Outono 1999, nº 3, pág. 13

sexta-feira, 2 de julho de 2010

palavras.. apenas palavras..




No desejo de me dar para ficar em ti confunde-me o medo de me dar inutilmente..
As tais verdades absurdas do momento, que só me levam a iludir-me com mentiras.
Por vezes tenho vontade de te dizer, com a voz carregada de certeza:
Desaprende o meu nome, o meu corpo. Preciso que me sintas livre para recomeçar um novo caminho..
Mas, mesmo sem to dizer, não o fazemos já todos os dias?
*
..as verdades que nos deixam um gosto amargo no ser..

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Quem Se Eu Gritar


"Tenho um grande desejo de solidão para pensar melhor em ti e em mim. Sobretudo para pensar em mim, porque me ignoro ainda totalmente e me vou perdendo de mim própria.
Pensar em ti é pensar num passado que está morto porque não chegou sequer a existir. Pensar em mim é preparar-me para o novo presente e para todas as surpresas possíveis que hão-de vir. Não sei quem foi que me disse que pensar no futuro é o mesmo que viver no passado, eternamente preso a coisas mortas. Eu penso agora em mim como um lago tranquilo, imperturbável, enquanto as sombras velhas vão ficando para trás em divisões do tempo."

* Y K Centeno
Quem Se Eu Gritar

quinta-feira, 10 de junho de 2010

* ..partir..


"Se eu pudesse não partir
Eu ficava aqui contigo
Se eu pudesse não querer descobrir
Se eu pudesse não escolher
Eu juro era este o meu abrigo
Se eu pudesse não saber que há mais
Mas como pode a lua não querer o céu?
Como pode o mar não querer o chão?
Como pode a vontade acalmar o desejo?
Como posso eu ficar..?"
*
* Margarida Pinto - Ficar (canção de embalar)
*
*
*
- Está na altura de seguir viagem Miriam - disse-lhe repentinamente - Vou partir dentro de sete dias e quero que venhas comigo. Desafio-te. Quero-te mostrar o mundo que existe fora das muralhas desta cidade, para que possas sentir a liberdade do ser que és.
- Não sabes nada de mim, não o esqueças: sou capaz de provocar as maiores calamidades na mente, do sonhar na noite, só para matar os sonhos quando a manhã chega. Não queiras gostar de mim. Sou uma caminhante errante, simplesmente o que resta da hipocrisia das estrelas. Quero o melhor para ti, e acredita que isso não é estares comigo. Iria destruir-te, e não quero. Desculpa.
- .. Criamos deuses falsos em capelas douradas. Destruimos irmãos em nome dele. Destruimos o único deus que nos suportou estes anos todos. Aquele que tu adoras. A destruir somos bons. Mas tu.. a mim?
Abraçaram-se. Ela deixou escorrer uma lágrima, receando que este fosse um momento de despedidas.
*
Talvez a ideia do desapego seja uma maneira de evitar a entrega. Teria ela assim tantas máscaras perante a ideia de se entregar a alguém? Há encontros que não acontecem por acaso. E a verdade foge-lhe, de novo.. O que era realmente importante para si? O que a fazia lutar? Talvez seja o desejo de liberdade, ou maior o medo de tocar o outro. A Entrega. Mas porquê a necessidade de erguer as máscaras, as barreiras? Muralhas de si..
*
Ouve-me. Que o dia te seja limpo e encontres magia onde o teu olhar pousar. És e serás sempre aquela parte de mim que desejava encontrar, mas os caminhos são longos e nem eu sei o que tenho de percorrer até dizer que sou livre. Estou presa a demónios e fantasmas.
Amo-te, mas é maior o meu medo.

domingo, 2 de maio de 2010

* Beltane


A Deusa vive em nós. E embora por vezes não possuamos esta consciência seremos sempre os seus instrumentos. Por vezes as suas armas, em tempos de guerra. Os seus lábios em tempos de amor.
Os batuques tocam ao longe. Acendem-se as fogueiras da purificação e celebra-se a Primavera do corpo. Ninguém sairá isento, começou a batalha orgiástica. E o corpo, este traidor que fala tão alto, transportando sensações e emoções que falam e arrastam langores tão fortes e mais altos que a razão. Líbido! Pecado original. Instinto promíscuo que transpira em nós, noite de desejo. Corpo com corpo. Pele com pele.. União transcendente e divina, que muitas vezes a razão chama de pecado mas que o coração apelida de encontro. E na chama da paixão encontramo-nos na união com o outro. Em cada gesto perdido a razão incerta de se atingir o auge da comunhão.
E a entrega acontece. Os corpos misturam-se, integram-se, fundem-se. Metade sensual, metade animal. Até que a chama faça eclodir a lava! Porque o corpo de uma mulher, guerreira ou sacerdotisa, é a casa do desejo. E as suas armas são um misto de perversidade incandescente e pureza que oferece ao ceder o seu corpo como guarida. E no seu corpo o refúgio.. A casa do desejo, do amor. É ali que se encontram os segredos do Universo, os mistérios que os homens anseiam por desvendar. Guerreiras. anciãs, meretrizes, virgens.. A Deusa revela-se em cada olhar, a luz do seu templo sagrado. Que desde que bem entregue é sempre explorado, bem alicerçado, levando em ondas de calor e pecado a sítios de dimensões unificadas. Calor da noite. Noites de luar, lua cheia, animal com cio à espera de ser encontrado.
Porque se o corpo fosse barreira em vez de ponte, não seria tão fulgurante o êxtase do momento em que Dois se tornam Um, regressando à forma primordial: andrógino celeste.
*
Metamorfose
texto escrito numa noite de Beltane, por três amigas: Deborah Silva, Emanuela Sousa, e Margarida Morais
*
Photo by Kyle Mackay

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Quem Se Eu Gritar


"Procuro nos meus dias algum significado. O que eu não quero é perder a memória, e deixar os dias murchando no passado só porque já passaram.
E não quero perder a memória porque os dias são belos. São belos porque são dias, são divisões do meu pequeno tempo, são criações da minha pequena vida.
E cada dia deve ser tão importante e tão completo em si como um poema.
Não é que a minha vida em particular, ou as minhas experiências, tenham importância. Têm importância não porque são minhas mas porque são a vida.
E cada vez eu amo mais a vida sobre todas as coisas. Amo-a como uma lição de abismo involuntário, principalmente quando me sinto derrotada.
A vida corre em mim como um longo poema sem principio e sem fim, um poema redondo, fechado por momentos, em que o amor ocupa todo o tempo e todo o espaço em branco.
*
Contigo despi-me de uma moral fictícia que trazia agarrada à minha antiga pele. Aquilo em que acreditamos com sinceridade é verdadeiro e bom.
Um sentimento fundo vale mais do que todas as regras."
*
Y. K. Centeno
Quem Se Eu Gritar
in Três Histórias de Amor
Foto por Cristina Martins

quinta-feira, 15 de abril de 2010

..desaprender..


"De súbito, tudo se torna autêntico e leve, quase transparente, apesar da opacidade que adivinha no silêncio.
Talvez para desaprender fosse necessário atravessar todas as formas de excesso, mastigar os cristais de alianças pretensiosamente eternas, deixar-se cair no espaço vazio das lentas convergências, onde as noites se transformam em galáxias subterrâneas, devoradoras, canibalescas, mortíferas, onde o corpo se desfaz e se renova na tensão de contínuas erecções, dólmen monolítico dos cumes propícios, santuário possível da união entre a beleza e a morte, como obscena conquista de si mesmo através dos caminhos da surpresa, ventre coroado de estrelas, no zénite da mais funda partilha.
Era essa a forma ideal de desaprender, de serenar, desarticulando os gestos conhecidos, os movimentos calculados, os sistemas artificiais onde os amantes procuravam sempre a sua parte de verdade. Reflexão elementar."
*
Maria Graciete Besse
Incandescências
*
*
Terei de descobrir em mim uma nova forma de te amar.
Esquecendo medos.
Louvando a liberdade em nós.
Em cada despedida descubro sempre uma nova estrela no meu ser.
Serás tu que as escondes a cada noite que habitas em mim..?
Talvez tenhamos de desaprender os gestos de amor.
Recomeçar a cada movimento, a cada carícia.
Encontrar a unificação do Ser.

quarta-feira, 31 de março de 2010

* estrelas *


Deixaste as tuas estrelas em mim, e elas agora anseiam por renascer.. Renascer, largar o seu conforto, romper o ventre do meu templo. Buscando de novo o seu lugar no céu. Terei de me libertar das tuas estrelas. Guardarei apenas uma, a do meu amor por ti. Essa estará sempre presente. Mas guardarei essa estrela num lugar escondido da minha memória, até eu me esquecer da sua existência, até que a sua essência se dilua nas minhas veias, totalmente. E nesse momento também eu serei parte dos teus céus.

segunda-feira, 22 de março de 2010

* Ostara


Fica assim, perdida algures no tempo, divagando nos seus pensamentos. Talvez fosse o seu desejo de se apaixonar, de um novo amor que ainda não tivesse sentido, que a levava a pensar naquele estranho. Desejava apenas poder olhar para ele mais uma vez, e sentir em si o mergulhar nos olhos dele, o domador de dragões, caminhante dos céus, erguendo a sua máscara, tocando a sua melodia..


A Primavera chega para nos fazer lembrar o que já esquecemos, o que vivemos e o que iremos ganhar..
Noite de Lua, uma das muitas noites de devaneio e de loucura em que dou por mim invadida pela dor de não saber onde dói. Suspiro, rezo à Lua, à Deusa, apanho flores perdidas no chão e faço delas minha companhia. Mas sempre em busca de algo que não encontro, talvez por não existir. Talvez seja eu quem mais me julga, mesmo sabendo que não tenho esse direito. Mas devo ter em mente que novos começos devem surgir, sendo eu repleta da subtileza do cisne, da sabedoria da Imperatriz, possuindo a sua força. Devo evitar cair nas teias da maldade e da arrogância, do ódio e do ciúme. Sentir a chama do conhecimento em mim e agarrá-la como uma luz que pode ferir quem não estiver preparado para a ver. Caminhando sozinha, mas sem deixar que a solidão me incomode, para enfim desvender os mistérios do Mundo, do Universo, das estações e dos elementos.
O Sol ilumina-nos os dias, a Lua reflecte-nos a sua luz durante as noites, mas ergue os seus véus de mistérios, sensualidade e paixão. É ela que representa a Divindade Feminina, o ventre de onde viemos, a nossa mãe, virgem e anciã. Deusa minha, ilumina-me o caminho com o teu manto de estrelas, as flores do caminho. Quero-me reflectida no que me cerca, descobrir no meu interior a verdadeira vida.


- Sabes Lucas, as emoções são cavalos selvagens.. - disse-lhe enquanto escutava o suave murmúrio da aurora - Há quem saiba domá-los, há quem tente apenas. E no fim a pergunta é sempre a mesma: Para quê?
- Para quê..? Para partilhar uma vida em vez da história de uma. Não sei... - respondeu ele suspirando - Cada vez me dói mais. Não fazer muito para mudar. Estranho...
- Talvez também não possas fazer nada para mudar.. Há coisas que só acontecem quando têm de acontecer.
- Se tivesse que te contar o que sinto neste momento ficaria perdido em palavras. Não sei o que me espera, este verdadeiro rodopio de emoções e situações. Esqueço-me de que deveria fazer algo por mim, pelo mundo talvez. Mas que posso eu fazer, se já tudo foi feito?
- Como é estranha a vida.. Tão efémera, e ao mesmo tempo tão longa. Há segundos que nos marcam para a vida inteira, que nos acompanham a cada passo. Erramos, pecamos, na urgência de tudo sentir. O mundo, a alma, o corpo..
- A solidão que preciso para conseguir ver mais claramente. Apenas porque para se ser santo tem de se morrer, e para morrer é preciso viver. - disse Lucas, fechando os olhos - Que eu nunca me esqueça do valor de cada dia, da luz e das trevas, pois encontram-se sempre presentes em mim. Que o Mundo alcance a paz, nesta época de sombras e esclarecimento.
- Que a minha passagem por esta Terra não seja nem mais nem menos que uma brisa de Verão ou o brilhar de uma estrela. Não tenciono deixar a minha marca no mundo como já grandes génios o fizeram. Sinto-me pequena demais para isso. Quero apenas o brilhar, viver cada dia como se fosse o primeiro, sabendo-o como o último.
- Só para dizer que és perfeita. - Lucas sussurrou-lhe ao ouvido - Transparente como a água para todos perdidos e corrompidos pelo tamanho conhecimento da intuição perversa. Impossível não amar.
O sol começava a rasgar o horizonte, e Miriam sentiu em si a enorme força da natureza, naquelas coisas simples. A simplicidade onde o Divino se esconde.
- Que as nossas batalhas não sejam em vão. - disse ela como que numa prece para a deusa da natureza.
- Nunca em vão...

sexta-feira, 19 de março de 2010

como se pode ser gente?


"No canto de uma melodia iluminada pela luz de uma vela. Num extremo. Travo o extremo no silêncio solene de uma agonia de silêncio último. Agora, como então, apaixonemo-nos porque nada nos garante o estarmos vivos. Querer certezas disto é a certeza de errar a vida toda.
Que não exista mais nada que nos una que não seja isso. Nem amizade, nem companheirismo, nem um desígnio qualquer de um vício de corpo e terra, nem o temor da partilha de um futuro comum, nem um pensamento, nem uma palavra, nem o amor, nem sequer um riso comum.
Apenas esta vela selada numa redoma. Não perdurará. A combustão do que sobrevive é apenas o sabermos isso, e para ambos isso bastar, e não ser o tempo bastardo de rasar o ódio de tanto desejar. Permaneceremos para sempre educados, contidos, adulterados naquilo que fomos.
Um riso póstumo. Sou tão ridícula agora como então. Tempestades sobre uma terra fria. Sobre o desconforto de uma lua certa. O não saber explicar a anestesia em que me tenho, o emergir para sufocar, feridas de uma vida inteira que toda a gente tem... tudo isto... Tudo isto e mais. Mais do que a vida, mais do que a morte, mais do que a sorte: a consciência acerada de sentir e saber nisto vida. O não ser indigente ao esgar velado do endoidecer. O ser gente para toda a gente e não ser gente em lugar nenhum. O poder ser-se gentio ou gentil ou indigente ou indiferente quando se está bem e não para parecer bem. O cerne da questão, the very bottom as they say, é que são as paixões a mover-nos. Nada mais existe para além de paixão e movimento.
No frio da noite cinzenta paira sobre mim o tecto da minha escuridão. Dores excruciantes, acutilantes, febris da anemia. Seja. Seja eu (tão eu) nesse instante. Então fico. O instante extremo que a vela denuncia de solidão.
A pedra no caminho foi tantas vezes pontapeada que agora se acredita combustível de multidões.
À porta batem ventos de tempestade. O ser-se gente não é eterno. Os ventos também não. Se a tempestade perecer amanhã a ilha não deixará de ser ilha. A lua desapareceu no fúria das marés. O dia seguinte trouxe-me o entardecer descansado de vida a cessar de se debater. Deixo quem foi na cave. Numa curva sobre si. Num choro animalesco sem alma.
Como se pode ser tão inútil. Como se pode ser tão mesquinho. Como se pode ser gente."

Tatiana Faia
in 'Os Fazedores de Letras'

quinta-feira, 11 de março de 2010

Dá-me-te

"Aquece-me o peito nesta tarde. Não deixes que eu sinta frio. Desaprende o meu nome e o meu cheiro e mexe-me como se fosse outra pessoa. Desliga em nós o sentir das horas; ora correm depressa, ora se esquecem que somos ansiosos e demoram-se.
Nesta tarde não deixes que eu fale. Oferece-nos somente a deliciosa liberdade de sentir. As palavras trazem passados que não cabem na dimensão dos nossos sonhos. Essencialmente nunca te esqueças de ti própria, e comanda os movimentos, os teus e os meus, sempre, nessa sombra densa de seres. Nunca te esqueças; não digas o meu nome. Dá-me-te.
Se não quiseres sentir a chegada da noite, quase sempre inesperada, fecha já a janela e acende uma luz, bem distanciada de nós. Os rostos, ao tocarem-se pelo olhar, poderão regressar anos imensos. Não será bem isso que desejamos. Não será um passado nem um futuro. O ontem e o amanhã pouca diferença fazem entre si. Ao longo dos dias teimamos sempre conhecê-los, quando mais não fazemos, afinal, que confundi-los. É sempre assim e tu bem o sabes, possivelmente mais que ninguém, a partir do momento em que estás comigo. Por vezes pergunto-me porquê. O malabarismo de sonhos leva anos a ser aprendido. Talvez seja a sensação de desequilíbrio que te alicia. Talvez te tire do sério a inesperada controvérsia de sentires, apesar do teu rosto de olhar molhado denunciar-te a todo o momento. O teu corpo estremece à minima tentativa de inverter as coisas. Mas nesta tarde és tu que comandas. Não deixarás que esse Êxtase acabe ou que diminua de intensidade. Farás tudo para o manter. Unhas e dentes cerrados. Eu sei que serás sempre assim.
(...)
Não percas a incandescência clandestina do desconhecido. O brilho do teu olhar começa a ser invadido por esse tremor, ora de receio ora de fascínio. Afinal, fazemos de conta de que é a primeira vez. Não se trata de um fingimento. Pelo menos não vejo como tal. Talvez uma procura do que nunca soubemos ser um para o outro. Mas chega, pois estaria a falar de um passado. Prefiro realmente imaginar que não nos conhecemos.
(...)
Pega nesses copos e enche-los de vinho. Sempre tinto. Da cor do sangue. O álcool é um espelho que nos reflecte o interior. Desaprende a encadeada inércia e explode nas veias como droga. Há anos que não faço outra coisa. Existe um prazer secreto na debilitação dos corpos. Ninguém o comenta, mas todos o fazem. Calma, não o bebas de uma só vez. Ingere-o com sedução, com goles calmos e curtos. Terás que senti-lo descer até às entranhas e aquecer-te o ventre e o peito. Ao mesmo tempo esquece-te de ti e sente o que tenho para te dizer."

Fernando Dinis
Dá-me-te




Espero-te, com a incerteza a moldar-me os gestos.. Tento inventar estratagemas para me esquecer de ti, antes de me lembrar sequer.
Não consigo evitar a tua importância no meu ser. Por vezes basta apareceres para tudo ter um novo sentido. Por vezes basta a tua presença para ignorar o sentido do meu caminho.
Tudo deveria ser sempre como a primeira vez. Quando nos entregamos com a inocência de quem tudo quer descobrir: um novo corpo, um novo prolongamento do ser.
Mas poderão dois seres, já sendo, resistir ao chamado do desejo? Mesmo quando existem passados de mágoas, palavras que desejamos esquecer, sonhos por cumprir..

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

* cidade mágica


Ao longo da sua viagem de barco consegue sentir os últimos raios de sol a acariciar-lhe o rosto. "Olhar calado o rio, é ser o olhar, ser o olhado" (1), pensa. Perde-se na ondulação que o movimento constante do barco provoca. A luz do sol que se esconde reflectida na água. Deixa-se mergulhar em alma nas águas profundas. De si partiriam todos os caminhos para a sabedoria. Ser apenas parte do rio, pequena e instável, a dançar com a melhodia das próprias ondas.
A Primavera já começa a dar sinais de si.. Traz consigo uma nova onda de vivificação e rompimento. Chega agora a altura de esquecer frustrações e pesares, de invocar a energia geradora e tentar alcançar o que se quer.
*
É agora, perante o crepúsculo que viajo rumo à cidade mágica. A noite anuncia-se em mim. Os sonhos e desejos que ainda não foram descobertos ameaçam emergir. Lisboa, cidade mágica, envolta pela luz dourada da noite que ainda não chegou.. em ti me perderei, uma vez mais, pois tenho um certo gozo em fazê-lo. Cantando as mesmas melodias, as mesmas confissões renovadas..
E continuarei a perder-me, até me encontrar.
*
Lisboa que anoitece. Erguem-se os véus na cidade mágica, a ansiedade de os desvendar nasce dentro dela, a ansiedade de descobrir o mistério por detrás de cada rua, cada esquina, cada janela.. Aprendendo lições esquecidas, que a alma não morre na sua eternidade. As promessas que fazemos antes de encarnar neste corpo físico. As lições que têm de ser aprendidas, o que sabemos desde sempre e que hoje em dia esquecemos.
Caminha pelas ruelas da cidade, deixando-se guiar pela melodia da flauta que envolve as paredes, as casas.. Aquela flauta mágica, cujo som tem o dom de domar dragões, de encantar os rostos das pessoas que caminham a seu lado. A Lua anuncia-se nos seus véus. Lua da Sementeira, do Corvo que revela o seu lado místico e oculto. Raramente se mostra, mas quando o faz a sua luz fere-a, e encontra na sua forma o brilhar.
Caminhante errante. Vivia de sonhos, na esperança de cruzar o céu e a terra neste mundo. A Espera, Esperava-o, porque não tinha aprendido a fazer outra coisa. Chamava-o, mas a incerteza a toldar-lhe a voz. Não sabia se ele a ouviria..
*
Por vezes o corpo anseia pela incerteza da noite, olhares ao acaso, máscaras que se erguem para se disfarçar o que não se quer ver. Copos perfurmados de vinho doce. Personagens que se avistam no meio da euforia de uma noite de carnaval. Uma noite para se esquecer de si, apenas mais uma. Uma noite em que a chuva despertava os corpos abandonados. A chuva tornava-se guia dos passos nos caminhos insondáveis das ruelas de luxúria.
*
Encontra Petra na noite, sorriem ao cruzar o olhar.
- Hoje pensei em ti, amante da lua - diz Petra cumprimentando-a - Estive a ler sobre mitologia. Sobre Ártemis e Apolo, irmãos gémeos, filhos de Zeus.
Apolo, dotado de uma beleza singular, era o deus que todos os dias conduzia o seu carro de luz pelos céus, doando aos homens toda a sua energia e força. Era também o deus da música, e encantava todos com a melodia da sua lira.
- Falando em música - lembra-se Miriam - Esta noite ouvi uma doce melodia ao caminhar pelas ruas da cidade. Parecia envolver os caminhos todos, e não consegui perceber de onde vinha aquele som capaz de domar dragões.
- Sei do que falas - disse Petra com um sorriso - Eu vi o rapaz que tocava essa flauta. Com um certo mistério no olhar, e também me conseguiu encantar com a sua melodia. Mas deixa-se falar-te sobre Ártemis, ou Diana, no seu nome romano..
Ártemis tornou-se a deusa da Lua e da caça. Quando era ainda criança, pediu a Zeus, seu pai, que a mantivesse virgem, lhe desse um arco e flecha, e também para que carregasse a luz em si, como o seu irmão Apolo. Zeus assim fez, dando-lhe igualmente ninfas para que fossem suas servas e guardiãs. O seu pequeno exército pessoal. Então assim ficaram Apolo, que tinha o poder de se iluminar por si mesmo, yang, e Ártemis, yin, que não gerava luz, mas que reflectia a do seu irmão.
*
De novo os opostos, qualidades masculina e feminina, luz e sombra, activo e passivo.
*
Vagueavam pelas ruas da cidade mágica, ainda encantada pela música de alguém que sabia domar dragões. Beberam e brindaram às chuvas que denunciavam a chegada da Primavera. Dançavam nas suas vestes de fogo e sorriam à noite que as acolhia.
O vinho perfurmado. Apenas mais um copo, o suficiente para alegrar a mente e divagar nas conversas que surgem com um piscar de olhos. É então que entram no último bar da noite, refugiando-se da chuva que se fazia sentir e que as forçava a procurar um porto de abrigo.
Ali estava ele, um perfeito personagem, e parecia que sempre ali tinha estado sem que o tempo tocasse no seu rosto. Tocando a sua flauta mágica naquele local de abrigo. O domador de dragões. Calmo e sereno, com o seu cabelo escuro caído sobre os ombros. Algo lhe chama a atenção para ele. É bonito, não o pode negar, mas não era decerto a sua beleza que a tinha fascinado..
Ele dirige-se a ela - Sabes, dizem que a chuva purifica-nos a alma.
- Sim, mas para quem tem a coragem de se purificar verdadeiramente - responde Miriam desviando o olhar para as gotas que caiam na rua.
- Estou farto de estar aqui entre estas quatro paredes e preciso de sentir a noite. Fazes-me companhia? - estende-lhe a mão, desafiando-a - O meu nome é Lucas, já não sou um estranho para ti.
*
Por vezes a chuva e a noite entranham-se na pele. Devoram com o desejo de passos errantes, passos que levam aos abismos, mas que fazem crescer. Purificam, na sua ânsia de evolução. A água cobrindo os cabelos, pequenas gotas beijando os rostos e desaguando num rio de sensações e emoções. Purificam, na sua ânsia de libertação. Gritaram pela vida nas ruas da cidade, seguindo os rios de memórias esquecidas. Dançaram com os corpos colados, com a naturalidade de quem se conhece desde sempre. A chuva e a noite. A chuva tornou-os vulneráveis. A noite esqueceu as suas máscaras e pôs a descoberto novos rostos..
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*
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(1) - retirado do texto "O Jardim Secreto" de Gonçalo Castelo Branco in Os Fazedores de Letras, Nº38 Março de 2001

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

* Imbolc


De novo os mesmos gritos ferozes, de pássaros selvagens por certo. Agitados, como as nuvens que se abatem sobre as colinas que o seu olhar alcança. A noite chega sobre o castelo. Consegue ouvir os cães das redondezas excitados, exaltados, uivando à lua que se esconde nos seus véus de brumas. Imbolc, noite de magia. Acendem-se velas nas casas para acelerar a chegada da Primavera, o seu cheiro a flores e campos de verdes brilhantes. Dirige-se à janela para fumar um cigarro. Desprende-se da viola e dos seus sons para escutar os pássaros selvagens. Para deixar a imaginação ganhar asas e adivinhar o que a neblina esconde. Mais uma noite sem sono, embora o seu corpo cansado anseie por repouso.

Imbolc reina, as velas acendem-se para acelerar a partida do Inverno. A Lua cheia, Lua leonina, brilha nos mantos negros da noite. Queria falar da importância de enfrentar as nossas sombras. Fomos um só em certas noites, os nossos corpos comungaram e as nossas almas abraçaram-se. Mas tão breves esses momentos..
Do que ficou pouco ou nada resta a dizer. O nosso tempo passou, as sombras esconderam as folhas da nossa árvore, agora entregue ao vento do Inverno.
Tão perto e tão longe, os ciclos insistem em viver em nós.
Agora que a madrugada cai sobre o meu ser, dou por mim a mergulhar nas teias da minha mente. Uma certa calma apodera-se de mim, aquela calma de quem já não tem mais nada a perder, pois nem sequer sabe o que tem de importante. Algo porque dar a vida?
Os sinos tocam lá fora, melodias de pássaros selvagens, cavalos a rondar o campo que me cerca. A paixão pelas coisas simples da vida, pelos momentos únicos em que a vida pode mudar o seu rumo.
Que eu seja capaz de amar, com a total liberdade da alma, sendo simplesmente eu, aquela que julgo conhecer tão bem, mas que a cada ciclo reencontra uma nova luz em si.

Ano cheio de enigmas..
Comemoramos a vida todos os dias? Somos capazes de empreender toda a sua beleza, o seu mistério? Quero sentir o brilhar da alma em mim.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

sobre mudanças


"Todas as mudanças, mesmo as mais desejadas, têm a sua melancolia;
porque deixamos para trás uma parte de nós.
Precisamos de morrer uma vida antes de entrar noutra."

* Anatole France

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

As Palavras Que Pena


"Uma vontade enorme demorada de um outro eu ao mesmo tempo igual e diferente em que ela finalmente pudesse dissolver-se. A unidade mística e sensual a unidade perfeita de um todo noutro todo tranquilidade última de lago. O amor. Sempre a vontade de amar como raiz de vida e de morte, de perfeição e aniquilamento. Amor. Êxtase. Amor. Todos os caminhos vão lá ter, a esse encontro breve que normalmente acaba em desencontro. Se há só um tronco na Árvore da Vida como é possível que os seus ramos se ignorem e permaneçam sempre afastados. E se há vários troncos e uma só raiz como é possível que subterraneamente os homens não se encontrem nem a si nem aos outros, como é possível que vivam isolados, dividos em pequenas parcelas de tempo e de espaço. A procura, percebes o que é? A procura, tal como dela dão testemunho tantos homens da nossa geração. Geração inquieta. Às vezes o movimento é tão interior que não se dá por ele. Julga-se que o homem em questão está parado. Ou até que retrocede. Mas pode nem sequer ser um movimento. Pode ser uma espera. Esperar é uma das muitas formas possíveis de procura. Esperar completamente só, completamente imóvel no silêncio."
*
Y. K. Centeno
As Palavras Que Pena
in Três Histórias de Amor

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Renascer das Cinzas


Hoje foi um bom dia.
O sentir-me grata pela vida, pelos instrumentos que o Universo me oferece, para deste modo continuar a missão.
Que este seja o sinal de um recomeço.
Deixar fluir a energia que anseia por vibrar na sua essência mais pura.
Caminhante errante, talvez.
Mas por vezes são os erros que me fazem brilhar.
O caos interior que dá lugar à estrelkdanza.


"Lá em cima surgem as estrelas e a sua luz não chega.
É tudo demasiado pequeno para o nosso desejo,
e nós abandonamo-nos à onda."

José Fer

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Um Deus da Montanha


"Os Deuses aguardam a reunião consciente da mente do Homem com a Mente Universal. A Humanidade desperta lentamente. Cegos pela matéria, através dos séculos, poucos Homens perceberam até agora a Mente dentro da substância, a Vida dentro da forma.
Em busca de poder e riquezas os Homens têm percorrido a Terra, penetrando as florestas, escalando os picos e conquistando os desertos polares. Deixemo-lo agora, buscar dentro da forma, escalar as alturas da sua própria consciência, penetrar suas profundidades, em busca daquela Força e Vida interiores, únicas pelas quais ele pode tornar-se forte em Vontade e espiritualmente enriquecido.
Aquele que assim abre a sua vida e mente à Vida e Mente Universais, subjacentes em todas as coisas, entrará em união com elas e a esse os Deuses aparecerão."
*
Geoffrey Hodson
Um Deus da Montanha
in "O Reino dos Deuses"
* imagem "Light Weaver" de Alex Grey

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

sobre a Verdade



Será que vale a pena tantas interrogações num mundo onde a "verdade" nos é oferecida de bandeja?
Devemos acreditar no que nos é dito constantemente?

“O que eu quero é a verdade. Não sei qual. Uma verdade que entre dentro de mim e me rebente o peito e me faça estalar em mil bocados espalhados por todo o universo. Uma verdade que me faça ascender que me puxe para fora de mim que me arranque e me deixe suspensa no tempo e no espaço. Que anule a diferença entre uma coisa e outra coisa um gesto e outro gesto um estado e outro estado. Que anule a diferença entre as pessoas. Que seja como um rasgão horizontal nos olhos. Passar a ver a n dimensões. E viver de acordo com o que vejo. Saber como é de facto a vida. O que é a vida. Como é e o que é a morte. Saber a sério por dentro. Saber com luz e sombra. Saber qual a verdade qual a realidade qual a finalidade da minha existência, de toda a existência em geral. E porque existe o mundo. E para quê. Ponho tudo em questão. Não acredito em nada que não me venha de dentro. Mas de dentro não me vem nada. Mesmo que Deus se procure e se encontre nos homens, nalguns homens apenas, nos eleitos, qual o sentido dos que ficam de fora. E porque razão ficam de fora. E onde ficam e como ficam e porquê e não percebo quanto mais quero pensar menos percebo. Não sei se devo ser eu a chegar à verdade ou se devo apenas esperar que ela chegue a mim. (...) Não sei como reconhecê-la caso não venha como eu a imagino revestida de sombra e de luz, penetrando-me como um fogo secreto que depois se revolve na cabeça e no peito. Espero. Retiro-me enquanto espero, não fico presa a nada. (...) O que eu quero saber é a verdade. De uma vez para sempre a verdade. Que corra para mim e se transforme em mar e me deixe ficar imóvel e submersa e acordada. Pela primeira vez mesmo acordada.”

Y. K. Centeno
As Palavras Que Pena
in Três Histórias de Amor

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

* Relembrando Litha II



Caminharam sem destino, com a mente a vaguear por outros mundos, acariciando com o olhar todas as árvores e flores que encontravam a cada passo dado. Aquele refúgio dava a sensação de uma natureza abandonada pela mão humana, apenas luzinhas cintilantes se viam pelo caminho, pirilampos, guardiões da noite. Os seus passos levaram a um belo jardim, um lugar onde as almas repousavam após a sua vida terrena. Deitaram-se na relva, junto a uma árvore, sagrada noutros tempos, observando o céu, trocando frases sem sentido, saboreando o aroma que a terra exalava. O desejo da carne, a entrega impensada de dois corpos que procuram o amor no outro. Entregou-se a ele quando sentiu dentro de si as chamas da paixão queimarem-na. Riu com ele, por momentos pensou que era capaz de ficar assim eternamente, envolta pelos seus braços fortes, com o seu cheiro cravado na pele. Mas eternamente é muito tempo.. Quando os seus corpos unidos descansavam do êxtase da comunhão, ela suspirou-lhe ao ouvido “Quem és tu que me entraste na mente, no corpo? Que posso eu saber de ti? Estranho, um doce estranho.. entraste em mim como a luz que eu procurava. Uma noite de chuva que deu lugar ao Sol.”
Não haveria nada naquele momento que a fizesse acreditar que havia guerra, a proximidade das mãos, o espaço que Fausto ousara invadir, o beijo que lhe roubara mesmo ignorando o que escondiam as suas máscaras. Nele, Miriam encontrou um porto de abrigo para as tempestades da sua mente. Sabia-lhe bem poder partilhar as pequenas coisas com ele. Mas ainda lhe custava a entrega, o abandono subtil à união. Não queria encontrar nele apenas um preenchimento dos seus vazios. Disse a si mesma, vezes sem conta, que ele seria mais que isso. Mas o desejo de liberdade latejava no seu íntimo..

* Relembrando Litha I



Por vezes o passado assalta-a, sem avisar, sem se anunciar, para depois partir da mesma maneira, ferozmente.
Lembra-se de Fausto, aquele que embebedou as suas noites, a quem ela se deixou abandonar, para se perder. Permitiu-lhe o beijo, o toque, a sua entrada subtil no seu corpo de mulher-criança. Acendeu-se o fogo da paixão.. e agora restavam apenas as cinzas.
Conhecera-o na noite mais curta do ano, o Solstício, Litha, o momento em que o Sol, manifestação do Deus, atinge a sua plenitude e parte em busca da Terra do calor. Mantendo uma ligação manifesta com os ritmos da Natureza, encontrara maneira de comungar com os ritmos sabáticos no seu íntimo.

Através da sua arte de dançar com o fogo, seu elemento, contempla a luz de tudo o que a envolve, ignora os fantasmas que vivem dentro de si. A dança eufórica comanda o seu corpo já embriagado pelas comemorações sabáticas. O auge do calor, a multidão em seu redor. Fecha os olhos, tentando esquecer as feridas que a vida lhe trouxera, as paixões fugidias, as noites de prazer selvagem, entrega casual, promiscuidade. Oferece o seu corpo à música, num modo mais intenso de existir. Traz em si o odor da lembrança esquecida, demónios adormecidos que na noite a deixam livre para algo mais.
Não sabia se teria aprendido o que precisa para continuar em frente, ainda sente em si muita insegurança, muito desejo de ser sempre quem não era. A vida apresentava-lhe os mais belos desafios, mas continuava a sobreviver sem ser capaz de lutar por aquilo que amava, de decidir, de ser. Em si ardia o desejo de encontrar aquela pessoa capaz de desvendar os segredos da sua alma, apenas com o sentir, com o olhar.. Como se tal fosse possível sem primeiro sentir o desejo da sua alma, a missão talvez.

O choque brusco de dois corpos, violência impensada. Ele dirige-se a ela, furioso primeiro, risonho quando realmente se olham nos olhos. Não sabiam nesse momento que os seus corpos tinham sido atraídos por uma força que não entendiam. Ligam-se assim. Ela pede-lhe desculpa, não se tinha apercebido. Ele sorri apenas, deixando o olhar denunciar o desejo que sentia. A conquista do outro, o encontro inesperado, e quando dá por si não consegue desviar o olhar daquele homem que se cruzara na sua noite, no seu caminho. Um círculo dançante, ele do outro lado, falando casualmente com alguém, o desejo a crescer no seu peito. Queria-o conquistar, mas não se esforça muito, não sabia como, não era iniciada nos jogos de sedução. Limita-se a olhá-lo, de longe, dançando quando o seu corpo lhe pede, sorrindo quando a alma sente. E a noite trouxe o dia, anunciado pela Aurora, guardiã dos sonhos dos madrugadores. O primeiro dia de Verão.
Fecha os olhos para o céu, esticando os braços num agradecimento aos Deuses, pelo solstício, pelo calor que lhe invadia o corpo, que preenchia o espaço vazio entre ela e o mundo que a rodeava. Quando volta a abrir os olhos, ele está diante de si, sorrindo. Quem sabe o destino quisera-os ali naquela noite, agora transformada em dia. Um convite para um acordar sem dormir, para um novo dia, celebrar o Verão, os frutos maduros. Fausto, era o seu nome. Viera de um país distante, apenas para conhecer outras paisagens, e agora estava ali, diante de Miriam, agradecendo-lhe a ousadia daquele toque impensado.
Vem comigo, diz ela. Quero-te mostrar um sítio mágico, uma praia esquecida nas bordas de uma serra.

Guia-o pelos caminhos de terra até ao seu refúgio junto ao mar, na companhia do sol que brilha em todo o seu esplendor. Deita-se na areia a contemplar o horizonte, o calor que se entranha por todos os poros do seu corpo. Despe-se lentamente, descobrindo a coragem da nudez diante daquele homem que tanto a observa. Quero-me vestida de céu.. e sentir-me que nem estrela do mar, protegida por toda a Natureza que me rodeia e preenche.. E assim perde o medo de enfrentar o seu próprio reflexo. Aproxima-se das águas cristalinas e mergulha profundamente, sem dizer uma palavra, sabendo que nada que pudesse sair da sua boca poderia expressar o que vivia na sua alma. Sente o olhar dele sobre o seu corpo, um olhar de desejo, e aos pouco, o seu íntimo foi-se revelando à pessoa que ele era.
Falavam de tudo o que se lembravam, de poesia, música e vida, passando por momentos de silêncio compartilhado. Um silêncio que fala por si, que fala da verdade, do que as palavras não conseguem exprimir. Miriam abre o Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa, que ele traz consigo. Lê a primeira frase onde o seu olhar pousa: “Na grande claridade do dia o sossego dos sons é de ouro também. Há suavidade no que acontece. Se me dissessem que havia guerra, eu diria que não havia guerra. Num dia assim nada pode haver que pese sobre não haver senão suavidade”... Deixa-se embalar deitada ao sol que nem salamandra, permite que o sono trespasse o seu corpo e adormece por instantes.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Moral Estelar




63. MORAL ESTELAR

"Predestinada à tua órbita,
Que te importa, estrela, a noite?
Rola bem-aventurada, através do tempo!
Que a miséria te permaneça estranha.
A tua luz está destinada ao mais distante dos mundos:
A piedade deve ser-te um pecado.
Admite apenas uma lei: sê pura."

Nietzche

* imagem: "Starwalker" de Stephanie Pui-Mun Law

Lua Azul



É necessário libertarmo-nos da dita dor que o medo nos causa.
É uma dor imensa, que não se sente, mas que nos prende nas suas teias.
Torna-nos imóveis perante o que nos acontece nesta vida.
É urgente vencer os medos.
Arranjar a coragem suficiente para se ser verdadeiramente livre.
As badaladas soaram, o ano começou.
A chuva chegou para nos lembrar, talvez purificar.

* 1 de Janeiro de 2010 *

ANANDA VANII « Mensagem da Bem- Aventurança»

"Devem-se lembrar que nenhum trabalho grandioso pode ser realizado nesta Terra através de elogios. Para realizar qualquer tarefa nobre são necessários requisitos tais como: coragem, competência e máximo comprometimento. A vitória certamente será vossa. Em nenhuma circunstância devem-se preocupar com a vitória.

Vieram a esta Terra para realizar uma tarefa nobre; mantenham-se a trabalhar continuamente até alcançarem a vossa meta individual. E no final desse esforço, estão destinados a alcançar a vossa meta espiritual e a estabelecerem-se na Bem-aventurança Cósmica para toda a eternidade."

Shrii Shrii A’nandamurtiji