domingo, 19 de setembro de 2010

Elegias de Duíno


"Quem se eu gritasse, me ouviria entre as hierarquias dos anjos?
E dado mesmo que me tomasse um deles de repente em seu coração, eu sucumbiria
ante sua existência mais forte.
Pois o belo não é senão o início do terrível, que já a custo suportamos,
e o admiramos tanto porque ele tranquilamente desdenha destruir-nos.
Cada anjo é terrível.
E assim me contenho pois, e reprimo o apelo de obscuro soluço.
*
Ah! A quem podemos recorrer então?
Nem aos anjos, nem aos homens, e os animais sagazes logo percebem que não estamos muito seguros no mundo interpretado.
Resta-nos talvez alguma árvore na encosta que diariamente possamos rever.
Resta-nos a rua de ontem e a mimada fidelidade de um hábito, que se compraz connosco e assim fica e não nos abandona.
Ó e a noite, a noite quando o vento cheio dos espaços do mundo desgasta-nos o rosto - para quem ela não é / sempre a desejada, levemente decepcionante, que para o solitário coração se impõe penosamente.
Ela é mais leve para os amantes?
Ah! Eles escondem apenas um com o outro a própria sorte.
Não o sabes ainda? Atira dos braços o vazio para os espaços que respiramos;
talvez que os pássaros sintam o ar mais vasto num vôo mais íntimo.
*
Sim, as primaveras precisavam de ti.
Muitas estrelas esperavam que tu as percebesses.
Do passado erguia-se uma vaga aproximando-se, ou ao passares sob uma janela aberta, um violino se entregava.
Tudo isso era missão. Mas a levaste ao fim?
Não estavas sempre distraído pela espera, como se tudo te ansiasse a bem amada?
(onde queres abrigá-la então, se os grandes e estranhos pensamentos entram e saem de ti e muitas vezes ficam pela noite.)
Se a nostalgia te dominar, porém, cantas as amantes; muito ainda falta para ser bastante imortal seu celebrado sentimento.
Aquelas que tu quase invejaste, as desprezadas, que tu achaste muito mais amorosas que as apaziguadas.
Começa sempre de novo o louvor jamais acessível;
Pensa: o herói se conserva, mesmo a queda lhe foi apenas um pretexto para ser: o seu derradeiro nascimento.
As amantes, porém, a natureza exausta as toma novamente em si, como se não houvesse duas vezes forças para realizá-las.
Já pensaste pois em gaspara Stampa o bastante para que alguma jovem, a quem o amante abandonou, diante do elevado exemplo dessa apaixonada, sinta o desejo de tornar-se como ela?
Essas velhíssimas dores afinal não se devem tornar mais fecundas para nós?
Não é tempo de nos libertarmos, amando, do objecto amado e a ele tremendo resistirmos como a flecha suporta à corda, para, concentrando-se no salto Ser mais do que ela mesma?
Pois parada não há em / parte alguma.
*
Vozes, vozes.
Escuta, coração como outrora somente os santos escutavam:
até que o gigantesco apelo levantava-os do chão;
mas eles continuavam ajoelhados, inabaláveis, sem desviarem a atenção: eles assim escutavam.
Não que tu pudesses suportar a voz de Deus, de modo algum.
Mas escuta o sopro, a incessante mensagem que nasce do silêncio.
Daqueles jovens mortos sobe agora um murmúrio em direcção /a ti.
Onde quer que penetraste, nas igrejas de Roma ou de Nápoles, seu destino não falou a ti, / tranquilamente?
Ou uma augusta inscrição não se impõs a ti como recentemente a lousa em Santa Maria Formosa.
Que eles querem de mim?
Lentamente devo dissipar a aparência de injustiça que às vezes dificulta um pouco o puro movimento de seus espíritos.
*
Certo, é estranho não habitar mais terra, não mais praticar hábitos ainda mal adquiridos, às rosas e outras coisas especialmente cheias de promessas.
Não dar sentido do futuro humano; o que se era, entre mãos infinitamente cheias de medo.
Não ser mais, e até o próprio nome deixar de lado como um brinquedo quebrado.
Estranho, não desejar mais os desejos.
Estranho, ver tudo o que se encadeava esvoaçar solto no espaço.
E estar morto é penoso e cheio de recuperações, até que lentamente se divise um pouco da eternidade.
- Mas os vivos cometem todos o erro de muito profundamente distinguir.
Os anjos (dizem) não saberiam muitas vezes se caminham entre vivos ou mortos.
A correnteza eterna arrebata através de ambos os reinos todas as idades.
Sempre consigo e seu rumor as sobrepuja em ambos.
*
Finalmente não precisam mais de nós os que partiram cedo, perde-se docemente o hábito do que é terrestre, como o /seio materno suavemente se deixa, ao crescer.
Mas nós que de tão grandes mistérios precisamos, para quem do luto tantas vezes o abençoado progresso se origina - : poderíamos passar / sem eles?
É vã a lenda de que outrora, lamentando Linos, a primeira música ousando atravessou o árido letargo, que então no sobressaltado espaço, do qual um quase / divino adolescente escapou de súbito e para sempre, o vazio entrou naquela vibração que agora nos arrebata e consola e ajuda?"
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* Rainer Marie Rilke
* Elegias de Duíno
* (imagem de Alex Grey)

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