terça-feira, 15 de novembro de 2011

Poema da Despedida



"Não saberei nunca
dizer adeus

Afinal,
só os mortos sabem morrer

Resta ainda tudo,
só nós não podemos ser

Talvez o amor,
neste tempo,
seja ainda cedo

Não é este sossego
que eu queria,
este exílio de tudo,
esta solidão de todos

Agora
não resta de mim
o que seja meu
e quando tento
o magro invento de um sonho
todo o inferno me vem à boca

Nenhuma palavra
alcança o mundo, eu sei
Ainda assim,
escrevo."



* Mia Couto

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Encontro com um falso mendigo



" - Ouve..., - disse-lhe com súbita clareza o companheiro - sabes porque sou capaz de claramente me ver... me conhecer... me confessar? Por desprezo! Porque me desprezo. Desprezo é o sentimento, se é sentimento, que a humanidade mais geralmente me inspira; e às vezes ódio, quando pinta de belas aparências os seus piores vícios e cobardias; ou quando excede os mais razoáveis limites da estupidez e da maldade... já hoje viste, não é verdade?, darem-nos esmola vários nossos semelhantes. Alguns te pareceram, decerto, dotados do verdadeiro espírito de caridade. O teu coração agradeceu-lhes, talvez com sincera gratidão... Pois analisa um bocadinho a caridade deles e o teu reconhecimento. Qual o fundo dessas lindas aparências? Comodismo, vaidade, capricho, amor próprio, complacência..., e também certa sentimentalidade torpe, certo amolecimento obsceno a que, por aí, chamam bondade, e que só damos aos outros para que os outros no-los dêem a nós; ou para os darmos nós a nós próprios. Desprezo meu rapaz! Eis o que todos merecemos; o que tudo isto merece. É por desprezo que eu mendigo e me disfarço de pobre sendo rico; me faço ignorante e parvo, tendo muitos estudos. Era um grande inquieto; mas desde que desprezo, alcancei a paz. Vivo pachorramente, assisto à desgraça dos outros, divirto-me de vários modos, sou tão feliz quanto me é possível sê-lo. Na realidade, vivo como se continuamente estivesse representando. É como se tudo isto que vemos se reduzisse a um volúvel cenário, e a vida mais não fosse que uma extravagante comédia."

José Régio