quarta-feira, 31 de março de 2010

* estrelas *


Deixaste as tuas estrelas em mim, e elas agora anseiam por renascer.. Renascer, largar o seu conforto, romper o ventre do meu templo. Buscando de novo o seu lugar no céu. Terei de me libertar das tuas estrelas. Guardarei apenas uma, a do meu amor por ti. Essa estará sempre presente. Mas guardarei essa estrela num lugar escondido da minha memória, até eu me esquecer da sua existência, até que a sua essência se dilua nas minhas veias, totalmente. E nesse momento também eu serei parte dos teus céus.

segunda-feira, 22 de março de 2010

* Ostara


Fica assim, perdida algures no tempo, divagando nos seus pensamentos. Talvez fosse o seu desejo de se apaixonar, de um novo amor que ainda não tivesse sentido, que a levava a pensar naquele estranho. Desejava apenas poder olhar para ele mais uma vez, e sentir em si o mergulhar nos olhos dele, o domador de dragões, caminhante dos céus, erguendo a sua máscara, tocando a sua melodia..


A Primavera chega para nos fazer lembrar o que já esquecemos, o que vivemos e o que iremos ganhar..
Noite de Lua, uma das muitas noites de devaneio e de loucura em que dou por mim invadida pela dor de não saber onde dói. Suspiro, rezo à Lua, à Deusa, apanho flores perdidas no chão e faço delas minha companhia. Mas sempre em busca de algo que não encontro, talvez por não existir. Talvez seja eu quem mais me julga, mesmo sabendo que não tenho esse direito. Mas devo ter em mente que novos começos devem surgir, sendo eu repleta da subtileza do cisne, da sabedoria da Imperatriz, possuindo a sua força. Devo evitar cair nas teias da maldade e da arrogância, do ódio e do ciúme. Sentir a chama do conhecimento em mim e agarrá-la como uma luz que pode ferir quem não estiver preparado para a ver. Caminhando sozinha, mas sem deixar que a solidão me incomode, para enfim desvender os mistérios do Mundo, do Universo, das estações e dos elementos.
O Sol ilumina-nos os dias, a Lua reflecte-nos a sua luz durante as noites, mas ergue os seus véus de mistérios, sensualidade e paixão. É ela que representa a Divindade Feminina, o ventre de onde viemos, a nossa mãe, virgem e anciã. Deusa minha, ilumina-me o caminho com o teu manto de estrelas, as flores do caminho. Quero-me reflectida no que me cerca, descobrir no meu interior a verdadeira vida.


- Sabes Lucas, as emoções são cavalos selvagens.. - disse-lhe enquanto escutava o suave murmúrio da aurora - Há quem saiba domá-los, há quem tente apenas. E no fim a pergunta é sempre a mesma: Para quê?
- Para quê..? Para partilhar uma vida em vez da história de uma. Não sei... - respondeu ele suspirando - Cada vez me dói mais. Não fazer muito para mudar. Estranho...
- Talvez também não possas fazer nada para mudar.. Há coisas que só acontecem quando têm de acontecer.
- Se tivesse que te contar o que sinto neste momento ficaria perdido em palavras. Não sei o que me espera, este verdadeiro rodopio de emoções e situações. Esqueço-me de que deveria fazer algo por mim, pelo mundo talvez. Mas que posso eu fazer, se já tudo foi feito?
- Como é estranha a vida.. Tão efémera, e ao mesmo tempo tão longa. Há segundos que nos marcam para a vida inteira, que nos acompanham a cada passo. Erramos, pecamos, na urgência de tudo sentir. O mundo, a alma, o corpo..
- A solidão que preciso para conseguir ver mais claramente. Apenas porque para se ser santo tem de se morrer, e para morrer é preciso viver. - disse Lucas, fechando os olhos - Que eu nunca me esqueça do valor de cada dia, da luz e das trevas, pois encontram-se sempre presentes em mim. Que o Mundo alcance a paz, nesta época de sombras e esclarecimento.
- Que a minha passagem por esta Terra não seja nem mais nem menos que uma brisa de Verão ou o brilhar de uma estrela. Não tenciono deixar a minha marca no mundo como já grandes génios o fizeram. Sinto-me pequena demais para isso. Quero apenas o brilhar, viver cada dia como se fosse o primeiro, sabendo-o como o último.
- Só para dizer que és perfeita. - Lucas sussurrou-lhe ao ouvido - Transparente como a água para todos perdidos e corrompidos pelo tamanho conhecimento da intuição perversa. Impossível não amar.
O sol começava a rasgar o horizonte, e Miriam sentiu em si a enorme força da natureza, naquelas coisas simples. A simplicidade onde o Divino se esconde.
- Que as nossas batalhas não sejam em vão. - disse ela como que numa prece para a deusa da natureza.
- Nunca em vão...

sexta-feira, 19 de março de 2010

como se pode ser gente?


"No canto de uma melodia iluminada pela luz de uma vela. Num extremo. Travo o extremo no silêncio solene de uma agonia de silêncio último. Agora, como então, apaixonemo-nos porque nada nos garante o estarmos vivos. Querer certezas disto é a certeza de errar a vida toda.
Que não exista mais nada que nos una que não seja isso. Nem amizade, nem companheirismo, nem um desígnio qualquer de um vício de corpo e terra, nem o temor da partilha de um futuro comum, nem um pensamento, nem uma palavra, nem o amor, nem sequer um riso comum.
Apenas esta vela selada numa redoma. Não perdurará. A combustão do que sobrevive é apenas o sabermos isso, e para ambos isso bastar, e não ser o tempo bastardo de rasar o ódio de tanto desejar. Permaneceremos para sempre educados, contidos, adulterados naquilo que fomos.
Um riso póstumo. Sou tão ridícula agora como então. Tempestades sobre uma terra fria. Sobre o desconforto de uma lua certa. O não saber explicar a anestesia em que me tenho, o emergir para sufocar, feridas de uma vida inteira que toda a gente tem... tudo isto... Tudo isto e mais. Mais do que a vida, mais do que a morte, mais do que a sorte: a consciência acerada de sentir e saber nisto vida. O não ser indigente ao esgar velado do endoidecer. O ser gente para toda a gente e não ser gente em lugar nenhum. O poder ser-se gentio ou gentil ou indigente ou indiferente quando se está bem e não para parecer bem. O cerne da questão, the very bottom as they say, é que são as paixões a mover-nos. Nada mais existe para além de paixão e movimento.
No frio da noite cinzenta paira sobre mim o tecto da minha escuridão. Dores excruciantes, acutilantes, febris da anemia. Seja. Seja eu (tão eu) nesse instante. Então fico. O instante extremo que a vela denuncia de solidão.
A pedra no caminho foi tantas vezes pontapeada que agora se acredita combustível de multidões.
À porta batem ventos de tempestade. O ser-se gente não é eterno. Os ventos também não. Se a tempestade perecer amanhã a ilha não deixará de ser ilha. A lua desapareceu no fúria das marés. O dia seguinte trouxe-me o entardecer descansado de vida a cessar de se debater. Deixo quem foi na cave. Numa curva sobre si. Num choro animalesco sem alma.
Como se pode ser tão inútil. Como se pode ser tão mesquinho. Como se pode ser gente."

Tatiana Faia
in 'Os Fazedores de Letras'

quinta-feira, 11 de março de 2010

Dá-me-te

"Aquece-me o peito nesta tarde. Não deixes que eu sinta frio. Desaprende o meu nome e o meu cheiro e mexe-me como se fosse outra pessoa. Desliga em nós o sentir das horas; ora correm depressa, ora se esquecem que somos ansiosos e demoram-se.
Nesta tarde não deixes que eu fale. Oferece-nos somente a deliciosa liberdade de sentir. As palavras trazem passados que não cabem na dimensão dos nossos sonhos. Essencialmente nunca te esqueças de ti própria, e comanda os movimentos, os teus e os meus, sempre, nessa sombra densa de seres. Nunca te esqueças; não digas o meu nome. Dá-me-te.
Se não quiseres sentir a chegada da noite, quase sempre inesperada, fecha já a janela e acende uma luz, bem distanciada de nós. Os rostos, ao tocarem-se pelo olhar, poderão regressar anos imensos. Não será bem isso que desejamos. Não será um passado nem um futuro. O ontem e o amanhã pouca diferença fazem entre si. Ao longo dos dias teimamos sempre conhecê-los, quando mais não fazemos, afinal, que confundi-los. É sempre assim e tu bem o sabes, possivelmente mais que ninguém, a partir do momento em que estás comigo. Por vezes pergunto-me porquê. O malabarismo de sonhos leva anos a ser aprendido. Talvez seja a sensação de desequilíbrio que te alicia. Talvez te tire do sério a inesperada controvérsia de sentires, apesar do teu rosto de olhar molhado denunciar-te a todo o momento. O teu corpo estremece à minima tentativa de inverter as coisas. Mas nesta tarde és tu que comandas. Não deixarás que esse Êxtase acabe ou que diminua de intensidade. Farás tudo para o manter. Unhas e dentes cerrados. Eu sei que serás sempre assim.
(...)
Não percas a incandescência clandestina do desconhecido. O brilho do teu olhar começa a ser invadido por esse tremor, ora de receio ora de fascínio. Afinal, fazemos de conta de que é a primeira vez. Não se trata de um fingimento. Pelo menos não vejo como tal. Talvez uma procura do que nunca soubemos ser um para o outro. Mas chega, pois estaria a falar de um passado. Prefiro realmente imaginar que não nos conhecemos.
(...)
Pega nesses copos e enche-los de vinho. Sempre tinto. Da cor do sangue. O álcool é um espelho que nos reflecte o interior. Desaprende a encadeada inércia e explode nas veias como droga. Há anos que não faço outra coisa. Existe um prazer secreto na debilitação dos corpos. Ninguém o comenta, mas todos o fazem. Calma, não o bebas de uma só vez. Ingere-o com sedução, com goles calmos e curtos. Terás que senti-lo descer até às entranhas e aquecer-te o ventre e o peito. Ao mesmo tempo esquece-te de ti e sente o que tenho para te dizer."

Fernando Dinis
Dá-me-te




Espero-te, com a incerteza a moldar-me os gestos.. Tento inventar estratagemas para me esquecer de ti, antes de me lembrar sequer.
Não consigo evitar a tua importância no meu ser. Por vezes basta apareceres para tudo ter um novo sentido. Por vezes basta a tua presença para ignorar o sentido do meu caminho.
Tudo deveria ser sempre como a primeira vez. Quando nos entregamos com a inocência de quem tudo quer descobrir: um novo corpo, um novo prolongamento do ser.
Mas poderão dois seres, já sendo, resistir ao chamado do desejo? Mesmo quando existem passados de mágoas, palavras que desejamos esquecer, sonhos por cumprir..