terça-feira, 26 de abril de 2011

As coisas secretas da Alma



"Em todas as almas há coisas secretas cujo segredo é guardado até à morte delas. E são guardadas, mesmo nos momentos mais sinceros, quando nos abismos nos expomos, todos doloridos, num lance de angústia, em face dos amigos mais queridos - porque as palavras que as poderiam traduzir seriam ridículas, mesquinhas, incompreensíveis ao mais perspicaz. Estas coisas são materialmente impossíveis de serem ditas. A própria Natureza as encerrou - não permitindo que a garganta humana pudesse arranjar sons para as exprimir - apenas sons para as caricaturar. E como essas ideias-entranha são as coisas que mais estimamos, falta-nos sempre a coragem de as caricaturar. Daqui os «isolados» que todos nós, os homens, somos. Duas almas que se compreendam inteiramente, que se conheçam, que saibam mutuamente tudo quanto nelas vive - não existem. Nem poderiam existir. No dia em que se compreendessem totalmente - ó ideal dos amorosos! - eu tenho a certeza que se fundiriam numa só. E os corpos morreriam."

Mário de Sá-Carneiro
in 'Cartas a Fernando Pessoa'

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Dá-me-te



11.

Apaga-me este medo
nesta cegueira profunda
que me prende a respiração,
onde nestes momentos
o respirar tropeça pelo infinito
de mim
que já não sei quem sou.

Abraça-me, forte
onde a ternura inventa as janelas
de um ar rarefeito
correndo veloz numa estranheza
de desejo
e que no alto do sonho
me devolva quietude.

Mata em mim este medo, amor
que me confesso distante, assim
sem um pedaço de terra firme
onde aterre a fobia de te ser
e de te pertencer.



Fernando Dinis
Dá-me-te

sexta-feira, 22 de abril de 2011

A procura dos deuses



«A procura dos deuses é a procura de si próprio. E onde estamos escondidos? Na água, no ar, no fogo, na terra. Estamos na água, no rio escondido. A água faz parte do nosso corpo, mas não a vemos. Circula nas nossas veias, mas não a sentimos. Vemos apenas a água exterior. Só nos reconhecemos nos reflexos. Quando nos vemos reflectidos na água, sabemos também que somos luz, de outra forma não poderíamos reflectir-nos. Somos fogo, somos sol. Estamos no ar, na palavra. Quando pronunciamos os nomes dos nossos deuses, pronunciamos o nosso. Eles criaram-nos com a sua palavra e nós recriamo-los com a nossa. Os deuses e os homens são a mesma coisa. O filho do sol, o filho da água, o filho do ar, o filho do milho, nascem do ventre da mãe terra. Quando encontramos o sol, o fogo em movimento, a água, o rio escondido, o ar, o cântico sagrado, a terra, a carne do milho, dentro de nós próprios, transformamo-nos em deus.»


Laura Esquivel
in A Malinche
imagem: Holy Fire de Alex Grey

quinta-feira, 21 de abril de 2011

..a fecundidade da destruição..



"Vou deixar-te levar-me até à fecundidade da destruição. Por isso me atribuo um corpo, um rosto e uma voz. Eu sou-te como tu me és. Cala o fluxo sensacional do teu corpo e encontrarás em mim, intactos, os teus medos e as tuas penas. Descobrirás o amor separado das paixões e eu descobrirei as paixões privadas de amor. Sai do papel que te atribuis e descansa no centro dos teus verdadeiros desejos. Por um momento deixa as tuas explosões de violência. Renuncia à tensão furiosa e indomável. Eu passarei a assumi-las."

Anais Nin
A Casa do Incesto
imagem de Stephanie Pui-Mun Law

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Não canto porque sonho



"Não canto porque sonho.
Canto porque és real.
Canto o teu olhar maduro,
teu sorriso puro,
a tua graça animal.

Canto porque sou homem.
Se não cantasse seria
mesmo bicho sadio
embriagado na alegria
da tua vinha sem vinho.

Canto porque o amor apetece.
Porque o feno amadurece
nos teus braços deslumbrados.
Porque o meu corpo estremece
ao vê-los nus e suados."


Composição: Eugénio de Andrade

terça-feira, 5 de abril de 2011

É urgente


"É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor,
é urgente
permanecer."

* Eugénio de Andrade