sexta-feira, 19 de março de 2010

como se pode ser gente?


"No canto de uma melodia iluminada pela luz de uma vela. Num extremo. Travo o extremo no silêncio solene de uma agonia de silêncio último. Agora, como então, apaixonemo-nos porque nada nos garante o estarmos vivos. Querer certezas disto é a certeza de errar a vida toda.
Que não exista mais nada que nos una que não seja isso. Nem amizade, nem companheirismo, nem um desígnio qualquer de um vício de corpo e terra, nem o temor da partilha de um futuro comum, nem um pensamento, nem uma palavra, nem o amor, nem sequer um riso comum.
Apenas esta vela selada numa redoma. Não perdurará. A combustão do que sobrevive é apenas o sabermos isso, e para ambos isso bastar, e não ser o tempo bastardo de rasar o ódio de tanto desejar. Permaneceremos para sempre educados, contidos, adulterados naquilo que fomos.
Um riso póstumo. Sou tão ridícula agora como então. Tempestades sobre uma terra fria. Sobre o desconforto de uma lua certa. O não saber explicar a anestesia em que me tenho, o emergir para sufocar, feridas de uma vida inteira que toda a gente tem... tudo isto... Tudo isto e mais. Mais do que a vida, mais do que a morte, mais do que a sorte: a consciência acerada de sentir e saber nisto vida. O não ser indigente ao esgar velado do endoidecer. O ser gente para toda a gente e não ser gente em lugar nenhum. O poder ser-se gentio ou gentil ou indigente ou indiferente quando se está bem e não para parecer bem. O cerne da questão, the very bottom as they say, é que são as paixões a mover-nos. Nada mais existe para além de paixão e movimento.
No frio da noite cinzenta paira sobre mim o tecto da minha escuridão. Dores excruciantes, acutilantes, febris da anemia. Seja. Seja eu (tão eu) nesse instante. Então fico. O instante extremo que a vela denuncia de solidão.
A pedra no caminho foi tantas vezes pontapeada que agora se acredita combustível de multidões.
À porta batem ventos de tempestade. O ser-se gente não é eterno. Os ventos também não. Se a tempestade perecer amanhã a ilha não deixará de ser ilha. A lua desapareceu no fúria das marés. O dia seguinte trouxe-me o entardecer descansado de vida a cessar de se debater. Deixo quem foi na cave. Numa curva sobre si. Num choro animalesco sem alma.
Como se pode ser tão inútil. Como se pode ser tão mesquinho. Como se pode ser gente."

Tatiana Faia
in 'Os Fazedores de Letras'

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