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domingo, 15 de maio de 2011

Foi pena



"Foi pena.
Foi pena porque eu já estava quase totalmente purificada, virgem de emoções, sensações e desejos, e no momento em que perdi a música comecei a naufragar e a afundar-me novamente naquele espaço hostil.
(...)
De qualquer modo a música lavou o fumo dos cigarros, lavou o riso e o vinho, lavou-me o corpo e a alma. A música foi como uma tempestade de chuva, cinzenta, miúda, penetrante e lavou-me de ti.
Sinto-me outra vez capaz de pensar."


Y. K. Centeno
Quem Se Eu Gritar
in Três Histórias de Amor

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Amor a Contra-Relógio



"O desejo de amar cresce como uma onda nas madrugadas frias, nas madrugadas lentas.
(...)
Acordei sozinha no meu quarto e senti-me profundamente triste e abandonada porque o tempo estava contra mim, pela primeira vez na minha vida. O meu amor era a contra-relógio. Agora as coisas teriam sido diferentes, embora nada me garanta que pudessem por isso ser melhores. (...)
Ao enorme desejo de me dar para ficar em ti substituiu-se a sensação imediata de me ter dado inutilmente. Eu não fiquei em ti (às vezes pergunto-me a mim mesma se realmente me cheguei a dar) e num amor a contra-relógio é o tempo que ganha.
Hoje tenho a certeza e por isso modifiquei a minha ideia do tempo, já que o amor tal como foi é imodificável. Tenho a certeza também que voltarei a fazer o mesmo de cada vez que ame, porque sinceramente o tempo não me assusta agora que o conheço. Mas espero primeiro até ser loucamente amada. Digo loucamente e não é fazer literatura. Tem de ser loucamente. Como um bicho que rói alucinado as noites e os dias, o riso e o choro e as simples emoções neutrais de todas as pessoas. Se não não vale a pena, é um amor de mortos.
(...) Foi voluntariamente belo e triste. Aceitei logo de inicio a tristeza do nosso amor por causa da beleza que encerrava e que estoirou depois como um abcesso. Ainda não consegui desvender o mistério que há nos desencontros. Sejam quais forem as nossas relações fica sempre por resolver o mistério de tudo o que poderia ter acontecido e não aconteceu, não sei porquê."


Y. K. Centeno
Quem Se Eu Gritar
in Três Histórias de Amor

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Quem Se Eu Gritar


"Não tenho remorsos e não lamento nada. Só é pena que tu não tenhas estado à minha altura para transformar o nosso encontro em mais do que uma história banal. Mas este problema é teu, não deve interessar-me, embora me humilhe quando penso. Procurei-te tanto nas noites da floresta. Encontrei-te e perdi-te lutando contra o tempo entre a terra e o mar e entre as paredes frias do quarto branco e preto.
A minha vida, que me entregaste inteira e de longe, e em que eu só reparei no fim, quando já vinha sentada no comboio, a vomitar quilómetros de morte entre nós.
(...)
Quanto tempo durou o nosso encontro? Um só momento ou uma vida inteira? Eu estava morta e agora parece-me que vivo novamente. Mas não me deixo prender nos laços de mim própria. Eu sei que entre nós está tudo acabado, porque de facto nada chegou sequer a começar. Mas já não me interessa. Quando eu amar alguém será fora do tempo, com todo o tempo livre para nós, alguém que fique em mim longamente entre o sono e a consciência morna, alguém em quem eu fique. O meu amor será extenuante. Será doce e profundo mas extenuante. Tu já não tens idade. O teu coração velho e o teu corpo usado não aguentam mais do que o peso e a forma e a sensação normal ou desviada de uma leve aparência. Nas horas de amor não é um ritmo de sangue que bate dentro de ti. É um relógio. O teu amor cansado não vem antes de tempo. E o teu tempo é urgente. E o verdadeiro tempo corre ao lado, e a música desfaz-se nele e todas as sensações se desfazem com ele. E ele próprio desfaz-se na memória.
(...)
Amo as noites da rua, o ar frio que me corta os lábios e as mãos. E o mistério dos outros bate em mim, e os outros passam e passam ao meu lado, sociáveis, bem vestidos, muito íntimos, excessivamente íntimos, tão íntimos que me empurram para o lado e me passam por cima. A maravilhosa cidade que não muda, e não diz como é. Onde o amor agoniza a cada canto e renasce mais longe.
O amor.
É verdade, o amor que me falta. Concretamente é isso que me falta. Um grande amor para as margens do rio e para as ruas brancas da cidade. Um grande amor de dia e de noite. Um grande amor selvagem e macio, e ao mesmo tempo frio, leve e frio, como o ar que respiro de noite nas ruas da cidade.
Enfim, um grande amor que eu já não tenha usado."
*
Y. K. Centeno
Quem Se Eu Gritar.

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Quem Se Eu Gritar


"Tenho um grande desejo de solidão para pensar melhor em ti e em mim. Sobretudo para pensar em mim, porque me ignoro ainda totalmente e me vou perdendo de mim própria.
Pensar em ti é pensar num passado que está morto porque não chegou sequer a existir. Pensar em mim é preparar-me para o novo presente e para todas as surpresas possíveis que hão-de vir. Não sei quem foi que me disse que pensar no futuro é o mesmo que viver no passado, eternamente preso a coisas mortas. Eu penso agora em mim como um lago tranquilo, imperturbável, enquanto as sombras velhas vão ficando para trás em divisões do tempo."

* Y K Centeno
Quem Se Eu Gritar

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Quem Se Eu Gritar


"Procuro nos meus dias algum significado. O que eu não quero é perder a memória, e deixar os dias murchando no passado só porque já passaram.
E não quero perder a memória porque os dias são belos. São belos porque são dias, são divisões do meu pequeno tempo, são criações da minha pequena vida.
E cada dia deve ser tão importante e tão completo em si como um poema.
Não é que a minha vida em particular, ou as minhas experiências, tenham importância. Têm importância não porque são minhas mas porque são a vida.
E cada vez eu amo mais a vida sobre todas as coisas. Amo-a como uma lição de abismo involuntário, principalmente quando me sinto derrotada.
A vida corre em mim como um longo poema sem principio e sem fim, um poema redondo, fechado por momentos, em que o amor ocupa todo o tempo e todo o espaço em branco.
*
Contigo despi-me de uma moral fictícia que trazia agarrada à minha antiga pele. Aquilo em que acreditamos com sinceridade é verdadeiro e bom.
Um sentimento fundo vale mais do que todas as regras."
*
Y. K. Centeno
Quem Se Eu Gritar
in Três Histórias de Amor
Foto por Cristina Martins