terça-feira, 15 de novembro de 2011

Poema da Despedida



"Não saberei nunca
dizer adeus

Afinal,
só os mortos sabem morrer

Resta ainda tudo,
só nós não podemos ser

Talvez o amor,
neste tempo,
seja ainda cedo

Não é este sossego
que eu queria,
este exílio de tudo,
esta solidão de todos

Agora
não resta de mim
o que seja meu
e quando tento
o magro invento de um sonho
todo o inferno me vem à boca

Nenhuma palavra
alcança o mundo, eu sei
Ainda assim,
escrevo."



* Mia Couto

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Encontro com um falso mendigo



" - Ouve..., - disse-lhe com súbita clareza o companheiro - sabes porque sou capaz de claramente me ver... me conhecer... me confessar? Por desprezo! Porque me desprezo. Desprezo é o sentimento, se é sentimento, que a humanidade mais geralmente me inspira; e às vezes ódio, quando pinta de belas aparências os seus piores vícios e cobardias; ou quando excede os mais razoáveis limites da estupidez e da maldade... já hoje viste, não é verdade?, darem-nos esmola vários nossos semelhantes. Alguns te pareceram, decerto, dotados do verdadeiro espírito de caridade. O teu coração agradeceu-lhes, talvez com sincera gratidão... Pois analisa um bocadinho a caridade deles e o teu reconhecimento. Qual o fundo dessas lindas aparências? Comodismo, vaidade, capricho, amor próprio, complacência..., e também certa sentimentalidade torpe, certo amolecimento obsceno a que, por aí, chamam bondade, e que só damos aos outros para que os outros no-los dêem a nós; ou para os darmos nós a nós próprios. Desprezo meu rapaz! Eis o que todos merecemos; o que tudo isto merece. É por desprezo que eu mendigo e me disfarço de pobre sendo rico; me faço ignorante e parvo, tendo muitos estudos. Era um grande inquieto; mas desde que desprezo, alcancei a paz. Vivo pachorramente, assisto à desgraça dos outros, divirto-me de vários modos, sou tão feliz quanto me é possível sê-lo. Na realidade, vivo como se continuamente estivesse representando. É como se tudo isto que vemos se reduzisse a um volúvel cenário, e a vida mais não fosse que uma extravagante comédia."

José Régio

terça-feira, 26 de julho de 2011

incandescência


"E tudo se confundia com o que era, ou pensava ser, assim perdida e mais que tudo lúcida, à beira do renascer. Matéria bruta a desfazer-se, a dar lugar à febre, território poético onde se anunciava a morte, onde crescia apenas o furioso apelo das origens.
Estátua que entrevia, intensamente viva, construída de ondas regulares que faziam estremecer o caos e desenhavam em harmonia um baptismo de sangue."

Maria Graciete Besse
Incandescências

quinta-feira, 7 de julho de 2011

A tua beleza submerge-me



"Sabina já não beijava nem homens nem mulheres. Dentro da febre da sua ansiedade, o mundo ia perdendo a sua forma humana. Estava a perder o poder humano de articular o corpo noutro corpo em plenitude humana. Ela delimitava horizontes, afogando-se em planetas sem eixo, perdendo a sua polaridade e o seu saber divino de integração, fusão. Propagava-se como a noite se propaga no universo e não encontrou nenhum deus com quem repousasse. A outra metade pertencia ao sol e ela estava em guerra com o sol e com a luz. Não podia suportar traços de luz em livros abertos, nem a orquestração de ideias tricotadas num único tema; não seria coberta pelo sol e no entanto metade do universo pertencia ao sol; ela voltaria a serpente apenas para aquele que pudesse cobrir-lhe o corpo com a sua sombra dando-lhe a alegria da fecundação.
(...)

A tua beleza submerge-me, submerge o mais fundo de mim. E quando a tua pele me queima, dissolvo-me como nunca, perante um homem, me dissolvera. De entre os homens eu era a diferente, era eu própria, mas em ti vejo a parte de mim que és tu. Sinto-te em mim. Sinto a minha própria voz tornar-se mais grave como se te tivesse bebido, como se cada parcela da nossa semelhança estivesse soldada pelo fogo e a fissura não fosse detectável.

As tuas mentiras, não são mentiras, Sabina. São flechas lançadas para fora da tua órbita pela força da tua fantasia. Para alimentar a ilusão. Para destruir a realidade. Vou ajudar-te: sou eu quem inventará para ti as mentiras e com elas iremos atravessar o mundo. Atrás das nossas mentiras desenrolo o fio de ouro de Ariana - porque de todas as alegrias a maior é a de voltar pelo percurso das mentiras, chegar novamente ao ponto de partida e dormir uma vez por ano livre de todas as estruturas de superfície.

Tu deixaste a tua marca no mundo, Sabina. Eu apenas o atravessei como um fantasma. Será que à noite alguém dá pelo mocho na árvore, ou pelo morcego que vem contra a janela enquanto os outros falam, ou pelos olhos que reflectem como água e bebem como mata-borrão, ou pela piedade que vacila como luz de vela, ou pelo conhecimento seguro sobre o qual as pessoas adormecem?

Será que alguém sabe quem eu sou?"


Anais Nin
in A Casa do Incesto

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Tu eras também uma pequena folha


"Tu eras também uma pequena folha
que tremia no meu peito.
O vento da vida pôs-te ali.
A princípio não te vi: não soube
que ias comigo,
até que as tuas raízes
atravessaram o meu peito,
se uniram aos fios do meu sangue,
falaram pela minha boca,
floresceram comigo."


Pablo Neruda

sexta-feira, 24 de junho de 2011

pequenas partes de algo maior..


Há momentos em que é preciso dizer adeus, meter os pés a caminho, deixar que este se manifeste diante de nós. Criamos magia nas entrelinhas, nos instantes em que os passos distintos se cruzam e os corpos dançam pela vida. Louvando a liberdade de escolher viver no outro lado, num mundo em que as regras do amor e da paz reinam. Aceitando o outro sem reservas ou julgamentos, lembrando que todos unidos poderemos ser mais, que assim somos mais fortes. A familia que escolhemos encontrar pelo Caminho, talvez apenas para celebrar a Vida.

* ..a todos os viajantes que se reúnem em nome da felicidade.. *

"Conhecer alguém aqui e ali que pensa e sente como nós, e que embora distante está perto em espírito, eis o que faz da Terra um jardim habitado."
 * Goethe

A Melhor Maneira de Viajar é Sentir


"Afinal a melhor maneira de viajar é sentir. 
Sentir tudo de todas as maneiras. 
Sentir tudo excessivamente. 
Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas
E toda a realidade é um excesso, uma violência. 
Uma alucinação extraordinariamente nítida
Que vivemos todos em comum com a fúria das almas
O centro para onde tendem as estranhas forças centrífugas, 
que são as psiques humanas no seu acordo de sentidos."

Álvaro de Campos

..mensagens do Caminho.
Grata pela partilha *

.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Cântico Negro



"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!"



José Régio

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Prece Celta



«Que jamais, em tempo algum, o teu coração acalente ódio.
Que o canto da maturidade jamais asfixie a tua criança interior.
Que o teu sorriso seja sempre verdadeiro.
Que as perdas do teu caminho sejam sempre encaradas como lições de vida.
Que a música seja a tua companhia nos momentos secretos de ti mesmo.
Que os teus momentos de amor contenham a magia da tua alma eterna em cada beijo.
Que os teus olhos sejam dois sóis olhando a luz da vida em cada amanhecer.
Que cada dia seja um recomeço, onde a tua alma dance na luz.
Que em cada passo que dês fiquem marcas luminosas da tua passagem em cada coração.
Que em cada amigo o teu coração leve alegria, que celebre o canto da amizade profunda que liga as almas.
Que nos teus momentos de solidão e cansaço, esteja sempre presente no teu coração a lembrança de que tudo passa e se transforma, quando a Alma é grande e generosa...»

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Canto de Mim Mesmo



"As casas e os quartos estão repletos de perfumes,
as prateleiras estão repletas de perfumes,
Eu próprio aspiro essa fragrância, conheço-a e gosto dela,
Eu próprio dela poderia embriagar-me, mas não o
permitirei.
A atmosfera não é um perfume, não sabe a emanação
alguma, é inodora,
Para sempre ficará na minha boca, por ela me apaixonei,
Irei ao rio junto ao bosque e despojar-me-ei de disfarces
e roupas,
Estou louco por entrar em contacto com ela.
O fumo da minha própria respiração,
Ecos, ondulações, murmúrios e sussurros, raiz do amor,
fio de seda, forquilha e vide,
A minha respiração e inspiração, o bater do coração,
o sangue e o ar que passam pelos meus pulmões,

O odor das folhas verdes e das folhas secas, da praia e das
rochas escuras do mar, e do feno no celeiro,
O som das palavras que a minha voz atira aos remoinhos
do vento,
Alguns beijos leves, alguns abraços, os braços à volta
de um corpo,
O jogo de luz e sombra nas árvores com os dóceis ramos
balouçando,
O prazer de estar só ou no tumulto das ruas, ou pelos
campos e colinas,
A sensação de saúde, os gorjeios do grande meio-dia,
o meu canto ao levantar-me da cama e encontrar o sol.

Achas que mil acres são muitos? Achas que a Terra é muita?
Praticaste o necessário para aprender a ler?
Sentiste-te orgulhoso por captar o sentido dos poemas?

Fica comigo este dia e esta noite e possuirás a origem
de todos os poemas,
Possuirás o que há de bom na Terra e no Sol
(há milhões de sóis)
Não terás coisas em segunda ou terceira mão, nem verás
pelos olhos dos mortos, nem te alimentarás
dos espectros dos livros,
Nem através dos meus olhos verás, nem de mim terás
as coisas,
Escutarás tudo e todos e tudo em ti filtrarás."


Walt Whitman

segunda-feira, 23 de maio de 2011

migração



"A migração é um acto de sobrevivência. Malinalli desejava ter possuído a ligeireza das borboletas e ter migrado a tempo. Ter voado pelos céus, muito para além das nuvens, por cima delas, onde não se ouvissem os choros e os lamentos, onde não se avistassem os corpos mutilados, os rios de sangue, o cheiro a morte. Fugir antes que o seu coração congelasse e o seu espírito se desligasse dos seus deuses."


Laura Esquivel
in A Malinche

Marrow



"The answer came like a shot in the back
While you were running from your lesson
Which might explain why years later all you could remember
Was the terror of the question
Plus, you weren't listening
You were stockpilling canned goods
Making a bomb shelter of our basement
And I can't believe you let the moral go by
While you were soaking in the product placement

Where was your conscience?
Where was your consciousness?
And where did you put all those letters
That you wrote to yourself but could not address?

I'm a good kisser and you're a fast learner
And that kinda thing could float us for a pretty long time
Then one day you'd realize you've memorized my phone number
And you'll call it and find it's a disconnected line
'Cause I got tossed out the window of love's El Camino
And I shattered into a shower of sparks on the curb
You were smoking me weren't you? Between your yellow fingers
You just inhaled and exhaled without saying a word

Where was your conscience?
Where was your consciousness?
And where did you put all those letters
That you wrote to yourself but could not address?

There's a smorgasbord of unspoken poisons
A whole childhood of potions that are bottled up
And so one by one I am dusting off labels
i am uncorking bottles and filling up cups
So go ahead and have a taste of your own medicine
And I'll have a taste of mine
But first let's toast to the lists that we hold in our fists
Of the things that we promise to do differently next time

'Cause the answer came like a shot in the back
While you were running from your lesson
Which might explain why years later all you could remember
Was the terror of the question
Plus, I'm not listening to you anymore
My head is too sore and my heart's perforated
And I'm mired in the marrow of my (well ain't that) funny bone
Learning how to be alone and devastated

Where was my conscience?
Where was my consciousness?
And what do I do with all these letters
that I wrote to myself but cannot address?"


Ani Difranco

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Prece


Que nenhuma estrela queime o teu perfil,
Que nenhum deus se lembre do teu nome,
Que nem o vento passe onde tu passas,

Para ti criarei um dia puro,
livre como o vento repetido,
Como o florir das ondas ordenadas.


Sophia de Mello Breyner Andresen

segunda-feira, 16 de maio de 2011

My Name


"Why don't you ask me
How long I've been waiting
Set down on the road
With the gunshots exploding
I'm waiting for you
In the gloom and the blazing
I'm waiting for you

I sing like a slave I know
I should know better
I've learned all my lessons
Right down to the letter
And still I go on like this
Year after year
Waiting for miracles
And shaking with fear

Why don't you answer
Why don't you come save me
Show me how to use
All these things
That you gave me
Turn me inside out
So my bones can save me
Turn me inside out

You've come this close
You can come even closer
The gunshots get louder
And the world spins faster
And things just get further
And further apart
The head from the hands
And the hands from the heart

One thing that's true
Is the way that I love him
The earth down below
And the sky up above him
And still I go on like this
Day after day
Still I go on like this

Now I've said this
I already feel stronger
I can't keep waiting for you
Any longer
I need you now
Not someday
When I'm ready
Come down on the road
Come down on the road

My name, my name
Nothing is the same
I won't go back
The way I came.."

domingo, 15 de maio de 2011

Sempre o bem e o mal



"Sempre o bem e o mal. Todo o bem todo o mal de todos nós. De cada um por si. De todos nós. O bem e o mal nos olhos acesos pela noite com uma luzinha viva de tédio e de desejo. (...) Não nos devemos agarrar à vida porque a vida é pecado. Mas se não nos agarrarmos à vida enquanto dura o que nos ficará depois nas mãos vazias? Atam-nos as mãos e os braços e os pés e as pernas: Agora és minha. Agora podes começar a ser feliz. Somente em mim, comigo, sozinha nunca mais. Não pode ser. Eu tenho de partir. Seguir o meu caminho. Meu Deus, é a única coisa que te peço. Seja feita a minha vontade sobre mim sobre a terra. Por algum tempo ainda por favor seja feita."


Y. K. Centeno
As Palavras Que Pena
in Três Histórias de Amor

Foi pena



"Foi pena.
Foi pena porque eu já estava quase totalmente purificada, virgem de emoções, sensações e desejos, e no momento em que perdi a música comecei a naufragar e a afundar-me novamente naquele espaço hostil.
(...)
De qualquer modo a música lavou o fumo dos cigarros, lavou o riso e o vinho, lavou-me o corpo e a alma. A música foi como uma tempestade de chuva, cinzenta, miúda, penetrante e lavou-me de ti.
Sinto-me outra vez capaz de pensar."


Y. K. Centeno
Quem Se Eu Gritar
in Três Histórias de Amor

sábado, 14 de maio de 2011

Je suis le plus malade des surrealistes




"Uma estátua afectou-te os sentidos. Em ti o corpo e o espírito estão tremendamente ligados, mas é o espírito que deve vencer. Pressinto em ti um mundo de sentimentos ainda por nascer e sou eu o exorcista que os vai acordar. Tu própria não tens consciência deles. Estás a pedir para ser acordada com todos os teus sentidos femininos que em ti também são espírito. Sendo o que és, deves compreender a dolorosa alegria que sinto por te haver descoberto. O destino tem-me concedido mais do que alguma vez já sonhei ter. E, tal como todas as coisas trazidas pelo destino, esta veio de maneira fatal, sem hesitações e tão bela que me aterra. O meu próprio espírito e a minha vida são formados de clarões e eclipses que jogam constantemente dentro de mim e portanto à minha volta e em tudo quanto amo. Para aqueles que amo serei sempre uma fonte de dor profunda. Já observaste que por vezes tenho intuições, rápidas adivinhações, e outras vezes estou completamente cego. Então a coisa mais simples me escapa. Vais precisas de toda a tua subtil compreensão para aceitar esta simbiose de trevas e de luz.

(...)

Adoro os teus silêncios, são como os meus. És a única criatura diante de quem não me aflijo por causa dos meus próprios silêncios. O teu silêncio é veemente, carregado de essências, um silêncio estranhamente vivo, como um alçapão aberto por cima de um poço, donde se pode ouvir o secreto murmúrio da terra.

(...)

Sinto esse teu comovente silêncio falar-me e dá-me vontade de chorar de alegria. Tu habitas um domínio diferente do meu, és o meu complemento. Se é verdade que as nossas imaginações amam as mesmas imagens, desejam as mesmas formas, física e organicamente, tu és o calor, eu o frio. És flexível, languida, enquanto eu sou inquebrantável. Calcinado. Como um mineral. O meu receio é perder-te durante um desses períodos em que metade de mim se separa da outra. Que divina alegria não seria possuir um ser como tu, tão evanescente, tão ilusório.

(...)

Contigo posso regressar dos abismos em que tenho vivido. Tenho-me esforçado por revelar os trabalhos da alma por detrás da vida, as suas mortes. Só transcrevo abortos. Eu próprio sou um abismo absoluto. Só me consigo imaginar como um ser fosforescente dos combates que travo com as trevas. Sou quem tem mais profundamente sentido as hesitações da língua em relação ao pensamento. Sou quem melhor tem captado as suas escorregadelas, os ângulos das palavras perdidas. Sou quem tem atingido estados que ninguém se atreve a nomear, estados de alma malditos. Conheço esses abortos do espírito, a consciência dos fracassados, o reconhecimento das vezes em que o espírito cai na escuridão e se perde. Tem sido esse o meu pão de cada dia, a minha constante, obsessiva busca do irrecuperável.

(...)

Toda a beleza que suponha perdida no mundo está em ti e à tua volta. Se me encontro perto de ti, o meu ser não se contrai nem se arrepia. A fadiga terrível que me consome abranda. Essa fadiga, quando não estou contigo, é tão descomedida que se compara à que Deus deve ter sentido no princípio do mundo, ao ver todo o universo incriado, informe, a pedir para ser criado. Uma fadiga de língua que procura pronunciar coisas impossíveis até se torcer num nó e me sufocar. Uma fadiga desta massa de nervos que tenta suster um mundo em frangalhos. Uma fadiga dos sentimentos, do fervor dos meus sonhos, da febre das ideias, da intensidade das minhas alucinações. Uma fadiga do sofrimento dos outros e do meu. Sinto o meu próprio sangue trovejar dentro de mim e o horror de tombar dentro dos abismos. Mas se cairmos juntos, eu e tu, não hei-de ter medo. Cairemos nos abismos, mas tu levarás as tuas fosforescências até ao fundo mais fundo. Podemos tombar juntos e juntos subir no espaço. Eu estava constantemente exausto por causa dos meus sonhos, não pelos sonhos mas pelo medo de não ser capaz de regressar. Desnecessário regressar, agora. Hei-de encontrar-te em toda a parte aonde for, nas mesmas misteriosas regiões. Tu também conheces a linguagem e os pressentimentos dos nervos. Tu hás-de saber sempre o que estou a dizer, ainda que o não diga."


Anais Nin
in Debaixo de uma Redoma

quinta-feira, 12 de maio de 2011

Green Grass


"Lay your head where my heart used to be
Hold the earth above me
Lay down in the green grass
Remember when you loved me

Come closer don't be shy
Stand beneath a rainy sky
The moon is over the rise
Think of me as a train goes by

Clear the thistles and brambles
Whistle 'Didn't He Ramble'
Now there's a bubble of me
And it's floating in thee

Stand in the shade of me
Things are now made of me
The weather vane will say...
It smells like rain today

God took the stars and he tossed 'em
Can't tell the birds from the blossoms
You'll never be free of me
He'll make a tree from me

Don't say good bye to me
Describe the sky to me
And if the sky falls, mark my words
We'll catch mocking birds

Lay your head where my heart used to be
Hold the earth above me
Lay down in the green grass
Remember when you loved me"



* Cibelle
(original de Tom Waits)

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Pirata



"Sou o único homem a bordo do meu barco.
Os outros são monstros que não falam,
Tigres e ursos que amarrei aos remos,
E o meu desprezo reina sobre o mar.

Gosto de uivar no vento com os mastros
E de me abrir na brisa com as velas,
E há momentos que são quase esquecimento
Numa doçura imensa de regresso.

A minha pátria é onde o vento passa,
A minha amada é onde os roseirais dão flor,
O meu desejo é o rastro que ficou das aves,
E nunca acordo deste sonho e nunca durmo."


Sophia de Mello Breyner Andresen
in O Mar (poemas)

segunda-feira, 9 de maio de 2011

A importância das trevas



"O monge disse-lhe: O homem recusa o silêncio. Deus não se reconhece no homem. Quantas vezes terá o mundo de cair? Quantas vezes terá o Senhor de desviar a face, de voltar a olhar, de perdoar? Mas haverá alguma vez perdão universal? O homem não o merece.

Os seis dias correspondem aos seis caminhos, às seis aberturas do abismo, e finalmente aos seis canais que conduzem as águas para o abismo. Os seis dias foram criados pelo Verbo e designam as luzes que emanam do Verbo e iluminam o mundo.
O Verbo nasceu da união da luz activa e da luz passiva, denominada trevas.

A importância das trevas."


* Y. K. Centeno
in As Muralhas

Destruímos sempre aquilo que amamos



"Destruímos sempre aquilo que amamos,
em campo aberto, ou numa emboscada;
alguns com a leveza do carinho
outros com a dureza da palavra;
os cobardes destroem com um beijo
os valentes destroem com a espada."

* Oscar Wilde

terça-feira, 26 de abril de 2011

As coisas secretas da Alma



"Em todas as almas há coisas secretas cujo segredo é guardado até à morte delas. E são guardadas, mesmo nos momentos mais sinceros, quando nos abismos nos expomos, todos doloridos, num lance de angústia, em face dos amigos mais queridos - porque as palavras que as poderiam traduzir seriam ridículas, mesquinhas, incompreensíveis ao mais perspicaz. Estas coisas são materialmente impossíveis de serem ditas. A própria Natureza as encerrou - não permitindo que a garganta humana pudesse arranjar sons para as exprimir - apenas sons para as caricaturar. E como essas ideias-entranha são as coisas que mais estimamos, falta-nos sempre a coragem de as caricaturar. Daqui os «isolados» que todos nós, os homens, somos. Duas almas que se compreendam inteiramente, que se conheçam, que saibam mutuamente tudo quanto nelas vive - não existem. Nem poderiam existir. No dia em que se compreendessem totalmente - ó ideal dos amorosos! - eu tenho a certeza que se fundiriam numa só. E os corpos morreriam."

Mário de Sá-Carneiro
in 'Cartas a Fernando Pessoa'

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Dá-me-te



11.

Apaga-me este medo
nesta cegueira profunda
que me prende a respiração,
onde nestes momentos
o respirar tropeça pelo infinito
de mim
que já não sei quem sou.

Abraça-me, forte
onde a ternura inventa as janelas
de um ar rarefeito
correndo veloz numa estranheza
de desejo
e que no alto do sonho
me devolva quietude.

Mata em mim este medo, amor
que me confesso distante, assim
sem um pedaço de terra firme
onde aterre a fobia de te ser
e de te pertencer.



Fernando Dinis
Dá-me-te

sexta-feira, 22 de abril de 2011

A procura dos deuses



«A procura dos deuses é a procura de si próprio. E onde estamos escondidos? Na água, no ar, no fogo, na terra. Estamos na água, no rio escondido. A água faz parte do nosso corpo, mas não a vemos. Circula nas nossas veias, mas não a sentimos. Vemos apenas a água exterior. Só nos reconhecemos nos reflexos. Quando nos vemos reflectidos na água, sabemos também que somos luz, de outra forma não poderíamos reflectir-nos. Somos fogo, somos sol. Estamos no ar, na palavra. Quando pronunciamos os nomes dos nossos deuses, pronunciamos o nosso. Eles criaram-nos com a sua palavra e nós recriamo-los com a nossa. Os deuses e os homens são a mesma coisa. O filho do sol, o filho da água, o filho do ar, o filho do milho, nascem do ventre da mãe terra. Quando encontramos o sol, o fogo em movimento, a água, o rio escondido, o ar, o cântico sagrado, a terra, a carne do milho, dentro de nós próprios, transformamo-nos em deus.»


Laura Esquivel
in A Malinche
imagem: Holy Fire de Alex Grey

quinta-feira, 21 de abril de 2011

..a fecundidade da destruição..



"Vou deixar-te levar-me até à fecundidade da destruição. Por isso me atribuo um corpo, um rosto e uma voz. Eu sou-te como tu me és. Cala o fluxo sensacional do teu corpo e encontrarás em mim, intactos, os teus medos e as tuas penas. Descobrirás o amor separado das paixões e eu descobrirei as paixões privadas de amor. Sai do papel que te atribuis e descansa no centro dos teus verdadeiros desejos. Por um momento deixa as tuas explosões de violência. Renuncia à tensão furiosa e indomável. Eu passarei a assumi-las."

Anais Nin
A Casa do Incesto
imagem de Stephanie Pui-Mun Law

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Não canto porque sonho



"Não canto porque sonho.
Canto porque és real.
Canto o teu olhar maduro,
teu sorriso puro,
a tua graça animal.

Canto porque sou homem.
Se não cantasse seria
mesmo bicho sadio
embriagado na alegria
da tua vinha sem vinho.

Canto porque o amor apetece.
Porque o feno amadurece
nos teus braços deslumbrados.
Porque o meu corpo estremece
ao vê-los nus e suados."


Composição: Eugénio de Andrade

terça-feira, 5 de abril de 2011

É urgente


"É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor,
é urgente
permanecer."

* Eugénio de Andrade

quinta-feira, 3 de março de 2011

A Malinche



"A primeira coisa que aprendeu a moldar foi uma vasilha para beber água. Malinalli era uma menina de apenas quatro anos de idade, mas com grande sabedoria, e perguntou à avó:
- Quem se lembrou de fazer jarros para a água?
- A própria água se lembrou.
- E para quê?
- Para poder repousar na superficie e assim poder contar-nos os segredos do universo. Ela comunica connosco em cada charco, em cada lago, em cada rio; tem diferentes maneiras de se vestir de gala e de se apresentar a nós sempre nova. A piedade do deus que mora na água inventou os recipientes onde, ao mesmo tempo que alivia a nossa sede, fala connosco. Todos os recipientes que contêm água lembram-nos que deus é água e é eterno.
- Ah! - respondeu a menina admirada. - Nesse caso, a água é deus?
- Sim. E também o são o fogo, o vento e a terra. A terra é a nossa mãe, a que nos alimenta, aquela que, quando descansamos sobre ela, nos recorda de onde viemos. Em sonhos diz-nos que o nosso corpo é terra, que os nossos olhos são terra e que o nosso pensamento será terra lançada ao vento.
- E o fogo, que diz?
- Tudo e nada. O fogo produz pensamentos luminosos quando deixa que o coração e o espírito se fundam num só. O fogo transforma, purifica e ilumina tudo o que se pensa.
- E o vento?
- O vento também é eterno. Nunca acaba. Quando o vento entra no nosso corpo, nascemos, e, quando sai, é porque morremos, por isso temos de ser amigos do vento.
- E... este...
- Já nem sabes o que perguntar. É melhor guardares silêncio, não gastes a tua saliva. A saliva é água sagrada que o coração cria. A saliva não deve gastar-se em palavras inúteis porque então estaremos a desperdiçar a água dos deuses e olha, vou dizer-te uma coisa que não deves esquecer: se as palavras não servirem para humedecer nos outros a lembrança e conseguir que aí floresça a memória de deus, não servem para nada."



Laura Esquivel
in A Malinche

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Vou sair para comprar cigarros


"Meu amor, eu volto já
Vou por aí, vou ver o mar
Ouvir o canto da sereia
E duvidar, vou duvidar,
Do sol, do céu, do chão, do ar,
Vou-me afundar
Na ferida escura e esquiva
Que me tem cativo, imóvel
Sem solução

Meu amor, se eu naufragar
Se me perder no teu olhar
Desaparecer sob o luar
Me consumir de bar em bar
na bruma bêbada de um cais
Gritar que quero mais que a vida
E mais e mais e mais..
Perdoa
Perdi-me
Na confusão.

Se porém eu me encontrar
Talvez o mar se acalme no meu peito
E eu possa pôr os pés no chão
E respirar
E abraçar a solidão
E ocupar o meu lugar
Na vasta e tensa imensidão
E então voltar, e.. se..
Tu ainda me quiseres
Meu amor, se desejares
Dou-te tudo o que sobrar de mim."


JP Simões
Vou Sair Para Comprar Cigarros






quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Amor a Contra-Relógio



"O desejo de amar cresce como uma onda nas madrugadas frias, nas madrugadas lentas.
(...)
Acordei sozinha no meu quarto e senti-me profundamente triste e abandonada porque o tempo estava contra mim, pela primeira vez na minha vida. O meu amor era a contra-relógio. Agora as coisas teriam sido diferentes, embora nada me garanta que pudessem por isso ser melhores. (...)
Ao enorme desejo de me dar para ficar em ti substituiu-se a sensação imediata de me ter dado inutilmente. Eu não fiquei em ti (às vezes pergunto-me a mim mesma se realmente me cheguei a dar) e num amor a contra-relógio é o tempo que ganha.
Hoje tenho a certeza e por isso modifiquei a minha ideia do tempo, já que o amor tal como foi é imodificável. Tenho a certeza também que voltarei a fazer o mesmo de cada vez que ame, porque sinceramente o tempo não me assusta agora que o conheço. Mas espero primeiro até ser loucamente amada. Digo loucamente e não é fazer literatura. Tem de ser loucamente. Como um bicho que rói alucinado as noites e os dias, o riso e o choro e as simples emoções neutrais de todas as pessoas. Se não não vale a pena, é um amor de mortos.
(...) Foi voluntariamente belo e triste. Aceitei logo de inicio a tristeza do nosso amor por causa da beleza que encerrava e que estoirou depois como um abcesso. Ainda não consegui desvender o mistério que há nos desencontros. Sejam quais forem as nossas relações fica sempre por resolver o mistério de tudo o que poderia ter acontecido e não aconteceu, não sei porquê."


Y. K. Centeno
Quem Se Eu Gritar
in Três Histórias de Amor

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

*


"O ser humano é uma parte de um todo a que chamamos "Universo", limitada no tempo e no espaço. Vê-se a si mesmo, aos seus pensamentos e emoções, como estando separado do resto, numa espécie de ilusão óptica da consciência. Esta ilusão é um tipo de prisão que nos restringe aos nossos desejos pessoais e que nos limita o afecto apenas a umas quantas pessoas que nos rodeiam. A nossa tarefa deve ser a de nos libertarmos dessa prisão, alargando os nossos círculos de compaixão de modo a abraçarmos todas as criaturas vivas e conjunto da natureza, com toda a sua beleza."


* Albert Einstein *

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Star Matter



"Love gets started and next thing you know
It leaves everything else behind
Love sets fire to your schedule
And then calls an end to time


And when we're parted it's always too long
And every time you come back you come back so strong
And as soon as we can we gotta go lie down
In that place where our breath is one sound


And I was there to hear your bell
The first time it rang
And the beauty was the beauty of everything
Yeah, we are star matter from the big bang


And that love ain't far behind you
Love ain't far behind
That love ain't far behind you
Love ain't far behind
No, love ain't far behind you"

Ani Difranco

domingo, 30 de janeiro de 2011

devaneios do caminho




Observo-te enquanto dormes.
As linhas do teu rosto, corpo de desejo colado ao meu.
Tento desvender o segredo do teu sonho,
neste instante em que te sinto tão próximo.
Mas acordo, e o perto se torna distante.
A tua alma caminhante deixa o meu coração irrequieto.
Por isso viro costas e sigo o meu caminho.

Seremos enlaçadores de mundos, de estrelas,
como o fomos em tantas outras noites...
mas num outro amanhã, talvez, numa outra vida.
Por hoje serei apenas caminhante errante.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Amores Secretos



"O amor que se sente corresponde a um desejo não de dar mas de receber, amar é desejar ser amado, talvez só isso justifique a ordem de amar o próximo como a si mesmo.
Para saber quem somos temos de nos conhecer.
O conhecimento de si mesmo é a coluna estruturante - do desejo (como da Sabedoria proposta à entrada do templo de Delfos).
Conhece-te a ti mesmo.
Ao fim de tantos anos já me conheço um pouco, mas amo-me cada vez menos.
Encontro nas minhas amigas e amigos as qualidades que me faltam: força, coragem, alegria, determinação.
Não tenho nada disso.
Estou em dissolução, na pior fase, numa nigredo de que não sei sair.
Alguns julgarão que sim, que não preciso de nada e de ninguém.
Estão enganados.
Preciso muito de ajuda."


Y. K. Centeno
in Amores Secretos

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Morte de Rimbaud


I.



todos os pássaros sossegaram.
as crianças desceram das árvores, guardaram os jogos, recolheram a casa.


a noite está próxima.

levanto a cabeça e deixo a voz deambular por dentro deste silêncio de água e de estrelas.

a noite está próxima.

deixo o corpo escorregar na poeira luminosa.
acendo um cigarro, ponho-me a falar com o meu fantasma.


longe daqui, a cidade enfeitou-se com seus crimes de néon, com suas traições.
ouço hélices de barcos, motores, quando um rosto esvoaça ao alcance da mão.

a verdade é que passei a vida a fugir, de cidade em cidade, com um sussurro cortante nos lábios.
e atravessei cidades e ruas sem nome, estradas, pontes que ligam uma treva a outra treva.
caminho como sempre caminhei, dentro de mim - rasgando paisagens, sulcando mares, devorando imagens.


o absinto, esse álcool que me permitiu medir o tempo no movimento dos astros.
e vi a vida como um barco à deriva, vi esse barco tentar regressar ao porto - mas os portos são olhos enormes que vigiam os oceanos. servem para levarmos o corpo até um deles e morrer.

a noite está próxima.

vejo acenderem-se mãos voláteis, e uma sede de poços e de nomadismo.
sulco a areia que sitia as cidades para trás abandonadas.
abro fendas na memória, e a noite surge com suas cidades queimadas, desertas - e o vento... o vento cintila onde cresce o lobo que me ronda o sono.
estendo a mão, pego no revólver, mas nada acontece.


de nada me serviria inventar outra vez o rio das palavras, de nada me serviria saber a geometria exacta dos cristais, ou redesenhar o corpo e aperfeiçoa-lo.
fico assim, inerte, à beira da noite... olhando o brilho da lua jorrando águas.

o regresso nunca foi possível.
o verdadeiro fugitivo não regressa, não sabe regressar. reduz os continentes a distâncias mentais.
aprende a fala dos outros - e, por cima dele, as constelações vão esboçando o tormentoso destino dos homens.

pressinto uma sombra a envolver-me, ouço música... espirais de som subindo aos subúrbios da alma.
e acendo o lume das pirâmides, onde o tempo não foi inventado, e renego a alegria.
não semearei o meu desgosto, por onde passar.
nem as minhas traições.



II.


não consigo dormir, nunca mais.
ando de um lado para o outro, canso o corpo, enquanto a língua segrega uma saliva exterminadora.


lá fora, dentro da noite, os chacais, as hienas cercam a casa. mas o pior é este chacal que me esfarrapa as vísceras, esta hiena que me devora o sonho.
pela janela vejo a linha crepuscular da duna.
um novo corpo liberta-se do meu e caminha fora de mim - vejo-o afastar-se em direcção aos nevoeiros das cidades.
sei, nesse instante, que nenhum abraço chega para atenuar a dor da separação.
afastados, tudo o que nos resta é começar a imitar a vida um do outro.


o que dissemos perdeu o sabor e o sentido.
harrar, aden, lisboa, este silêncio... capaz de ordenar e desordenar o mundo, o canto sublime das miragens.
mas vai chegar o inverno, e a tristeza dos dias começa a zumbir à roda da cabeça.


abri a janela.
avisto uma nesga de céu limpo.
lembro-me de quando trocava um sorriso por um verso, ou um insulto.
imitávamos assim a felicidade.


o sol fulmina a memória. limpa-a da crueldade do passado.
a vida, aqui, reduz-se a efémeros passos, surdas gargalhadas, ideias que se evaporam lentamente.
enfim, o mundo não é assim tão grande...


e a vida, afinal, é como as orquídeas - reproduz-se com dificuldade.
mas estou cansado.
os olhos fecham-se-me com o peso das paixões desfeitas.
imagens, imagens que se colam ao interior das pálpebras - imagens de neve e de miséria, de cidades obsessivas, de fome e de violência, de sangue, aquedutos, de esperma, de barcos, de comboios, de gritos... talvez... talvez uma voz.


o desejo de um sol impiedoso, sobretudo enquanto dormia.


e embarquei num cargueiro, desertei em java, pensei mesmo construir uma casa.
mas não foi possível.


ainda vejo aquelas árvores cobertas de ossos luminosos, e a duna incendiada, o deserto onde posso continuar a reconstruir o universo.


escavo no coração um poço de sal, para dar de beber ao viajante que fui.
deixo o vento arrastar consigo a infindável caravana de ilusões.


e digo: que tudo se afogue na gordura das manhãs, que tudo silencie... e uma língua de fogo atinja os livros que não escreverei.



III.




os dias estão cheios de cartas e de recomendações, de amigos que partem para sempre, ou adoecem, de recados e de intrigas, de contas intermináveis, de ouro, de corpos, de fortuna e de infortúnios.
de morte, e de cães feridos a uivar à porta da desolação.


uma espécie de miséria e de orgulho, escorrem no fundo de mim. e talvez seja a mistura venenosa da miséria com o orgulho que me há-de perder...

não tenho mais nada a dizer. os poemas morreram.
fugir tornou-se uma obsessão, ou então é a melhor maneira de encenar o desespero.
bebi águas inquinadas.
vi o corpo suspenso no rebordo dos poços, o coração batendo descontrolado.


mas a morte, quando se aproxima, é uma coisa simples... vem comer à mão a cinza melodiosa dos dias.
por isso sei que, ao amanhecer, posso perguntar:
quantas áfricas murcharam na boca do amor?
quantas feras despedaçadas foram comidas ao entardecer?
quantos homens conseguiram apaziguar o relâmpago da paixão?
quantos desejos ficaram abandonados na escuridão intacta dos quartos?


a qual dos demónios me vender?
que besta suja será preciso adorar?
em que sangue contaminado mergulharei a língua?
que fogo estranho é este? que devora a beleza interior das coisas...
que mentira me poderá salvar?


uma golada de veneno e eis que se acende o talento.
o rumor precioso das sílabas. o choro e o riso.
o brilho gelado das imagens.
então, ergo o cachimbo e fumo um tempo futuro, ajeito o cinturão onde guardo o outro - e vou pelo engano das palavras.


descubro a febre, a ânsia do eterno viajante.
abro as mãos, solto as borboletas e os pássaros - que dizem ser a alma dos mortos.
um espelho onde não me reconheço. mas o pior é que nunca acreditei no que me disseram, e parti o espelho.

o azar nunca mais me largou, e também não posso dizer que os negócios me tenham corrido bem.
foi maldição, dizem.
paciência. mas não há maldição sem desejo - e eu não páro de desejar, sôfrego... capaz de arriscar a vida e a razão.
ou de matar.




IV.


um rasgão de luz sobre a pele, dormes na seiva doce das manhãs.
mas sabes que só há repouso para o sofrimento quando se entra no primeiro dia dos dias sem ninguém.
a dor, a perna amputada, a chaga viva, o sangue a latejar - o mapa da abissínia.


o sol enterra-se nas areias.
viajo, sem me mexer desta enxerga branca.
tento encontrar espaço para a lucidez do meu silêncio.
no lugar do poema coalha o ouro das geadas, e os animais são formas etéreas que se me colam ao rosto.
o que morre, quase não faz falta...


dantes ouvia o mar... bastava encostar a cabeça ao peito um do outro.
mas um homem em cujo coração se tenha concentrado toda a fúria de viver, será um homem feliz?
não sei se posso querer alguma eternidade... não sei...

o que vejo já não se pode cantar.

que horas serão dentro do meu corpo?
que mineral vermelho jorraria se golpeasse uma veia... não sei... não sei...


o que vejo já não se pode cantar.


lembro-me duma cabeça rebelde flutuando junto à janela.
mas a casa está repleta de gemidos, vai amanhecer, não me lembro de mais nada.

o que vejo já não se pode cantar.

recomeço a fuga, a última, e nela hei-de morrer de olhos abertos, atento ao mínimo rumor, ao mais pequeno gesto - atento à metamorfose do corpo que sempre recusou o aborrecimento.

o que vejo já não se pode cantar.

caminho com os braços levantados, e com a ponta dos dedos acendo o firmamento da alma.
espero que o vento passe... escuro, lento. então, entrarei nele, cintilante, leve... e desapareço.



* Al Berto


morte de rimbaud
dita em voz alta no coliseu de lisboa,
a 20 de novembro de 1996 *