"Não tenho remorsos e não lamento nada. Só é pena que tu não tenhas estado à minha altura para transformar o nosso encontro em mais do que uma história banal. Mas este problema é teu, não deve interessar-me, embora me humilhe quando penso. Procurei-te tanto nas noites da floresta. Encontrei-te e perdi-te lutando contra o tempo entre a terra e o mar e entre as paredes frias do quarto branco e preto.
A minha vida, que me entregaste inteira e de longe, e em que eu só reparei no fim, quando já vinha sentada no comboio, a vomitar quilómetros de morte entre nós.
(...)
Quanto tempo durou o nosso encontro? Um só momento ou uma vida inteira? Eu estava morta e agora parece-me que vivo novamente. Mas não me deixo prender nos laços de mim própria. Eu sei que entre nós está tudo acabado, porque de facto nada chegou sequer a começar. Mas já não me interessa. Quando eu amar alguém será fora do tempo, com todo o tempo livre para nós, alguém que fique em mim longamente entre o sono e a consciência morna, alguém em quem eu fique. O meu amor será extenuante. Será doce e profundo mas extenuante. Tu já não tens idade. O teu coração velho e o teu corpo usado não aguentam mais do que o peso e a forma e a sensação normal ou desviada de uma leve aparência. Nas horas de amor não é um ritmo de sangue que bate dentro de ti. É um relógio. O teu amor cansado não vem antes de tempo. E o teu tempo é urgente. E o verdadeiro tempo corre ao lado, e a música desfaz-se nele e todas as sensações se desfazem com ele. E ele próprio desfaz-se na memória.
(...)
Amo as noites da rua, o ar frio que me corta os lábios e as mãos. E o mistério dos outros bate em mim, e os outros passam e passam ao meu lado, sociáveis, bem vestidos, muito íntimos, excessivamente íntimos, tão íntimos que me empurram para o lado e me passam por cima. A maravilhosa cidade que não muda, e não diz como é. Onde o amor agoniza a cada canto e renasce mais longe.
O amor.
É verdade, o amor que me falta. Concretamente é isso que me falta. Um grande amor para as margens do rio e para as ruas brancas da cidade. Um grande amor de dia e de noite. Um grande amor selvagem e macio, e ao mesmo tempo frio, leve e frio, como o ar que respiro de noite nas ruas da cidade.
Enfim, um grande amor que eu já não tenha usado."
*
Y. K. Centeno
Quem Se Eu Gritar.
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