sexta-feira, 27 de maio de 2011

Cântico Negro



"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!"



José Régio

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Prece Celta



«Que jamais, em tempo algum, o teu coração acalente ódio.
Que o canto da maturidade jamais asfixie a tua criança interior.
Que o teu sorriso seja sempre verdadeiro.
Que as perdas do teu caminho sejam sempre encaradas como lições de vida.
Que a música seja a tua companhia nos momentos secretos de ti mesmo.
Que os teus momentos de amor contenham a magia da tua alma eterna em cada beijo.
Que os teus olhos sejam dois sóis olhando a luz da vida em cada amanhecer.
Que cada dia seja um recomeço, onde a tua alma dance na luz.
Que em cada passo que dês fiquem marcas luminosas da tua passagem em cada coração.
Que em cada amigo o teu coração leve alegria, que celebre o canto da amizade profunda que liga as almas.
Que nos teus momentos de solidão e cansaço, esteja sempre presente no teu coração a lembrança de que tudo passa e se transforma, quando a Alma é grande e generosa...»

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Canto de Mim Mesmo



"As casas e os quartos estão repletos de perfumes,
as prateleiras estão repletas de perfumes,
Eu próprio aspiro essa fragrância, conheço-a e gosto dela,
Eu próprio dela poderia embriagar-me, mas não o
permitirei.
A atmosfera não é um perfume, não sabe a emanação
alguma, é inodora,
Para sempre ficará na minha boca, por ela me apaixonei,
Irei ao rio junto ao bosque e despojar-me-ei de disfarces
e roupas,
Estou louco por entrar em contacto com ela.
O fumo da minha própria respiração,
Ecos, ondulações, murmúrios e sussurros, raiz do amor,
fio de seda, forquilha e vide,
A minha respiração e inspiração, o bater do coração,
o sangue e o ar que passam pelos meus pulmões,

O odor das folhas verdes e das folhas secas, da praia e das
rochas escuras do mar, e do feno no celeiro,
O som das palavras que a minha voz atira aos remoinhos
do vento,
Alguns beijos leves, alguns abraços, os braços à volta
de um corpo,
O jogo de luz e sombra nas árvores com os dóceis ramos
balouçando,
O prazer de estar só ou no tumulto das ruas, ou pelos
campos e colinas,
A sensação de saúde, os gorjeios do grande meio-dia,
o meu canto ao levantar-me da cama e encontrar o sol.

Achas que mil acres são muitos? Achas que a Terra é muita?
Praticaste o necessário para aprender a ler?
Sentiste-te orgulhoso por captar o sentido dos poemas?

Fica comigo este dia e esta noite e possuirás a origem
de todos os poemas,
Possuirás o que há de bom na Terra e no Sol
(há milhões de sóis)
Não terás coisas em segunda ou terceira mão, nem verás
pelos olhos dos mortos, nem te alimentarás
dos espectros dos livros,
Nem através dos meus olhos verás, nem de mim terás
as coisas,
Escutarás tudo e todos e tudo em ti filtrarás."


Walt Whitman

segunda-feira, 23 de maio de 2011

migração



"A migração é um acto de sobrevivência. Malinalli desejava ter possuído a ligeireza das borboletas e ter migrado a tempo. Ter voado pelos céus, muito para além das nuvens, por cima delas, onde não se ouvissem os choros e os lamentos, onde não se avistassem os corpos mutilados, os rios de sangue, o cheiro a morte. Fugir antes que o seu coração congelasse e o seu espírito se desligasse dos seus deuses."


Laura Esquivel
in A Malinche

Marrow



"The answer came like a shot in the back
While you were running from your lesson
Which might explain why years later all you could remember
Was the terror of the question
Plus, you weren't listening
You were stockpilling canned goods
Making a bomb shelter of our basement
And I can't believe you let the moral go by
While you were soaking in the product placement

Where was your conscience?
Where was your consciousness?
And where did you put all those letters
That you wrote to yourself but could not address?

I'm a good kisser and you're a fast learner
And that kinda thing could float us for a pretty long time
Then one day you'd realize you've memorized my phone number
And you'll call it and find it's a disconnected line
'Cause I got tossed out the window of love's El Camino
And I shattered into a shower of sparks on the curb
You were smoking me weren't you? Between your yellow fingers
You just inhaled and exhaled without saying a word

Where was your conscience?
Where was your consciousness?
And where did you put all those letters
That you wrote to yourself but could not address?

There's a smorgasbord of unspoken poisons
A whole childhood of potions that are bottled up
And so one by one I am dusting off labels
i am uncorking bottles and filling up cups
So go ahead and have a taste of your own medicine
And I'll have a taste of mine
But first let's toast to the lists that we hold in our fists
Of the things that we promise to do differently next time

'Cause the answer came like a shot in the back
While you were running from your lesson
Which might explain why years later all you could remember
Was the terror of the question
Plus, I'm not listening to you anymore
My head is too sore and my heart's perforated
And I'm mired in the marrow of my (well ain't that) funny bone
Learning how to be alone and devastated

Where was my conscience?
Where was my consciousness?
And what do I do with all these letters
that I wrote to myself but cannot address?"


Ani Difranco

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Prece


Que nenhuma estrela queime o teu perfil,
Que nenhum deus se lembre do teu nome,
Que nem o vento passe onde tu passas,

Para ti criarei um dia puro,
livre como o vento repetido,
Como o florir das ondas ordenadas.


Sophia de Mello Breyner Andresen

segunda-feira, 16 de maio de 2011

My Name


"Why don't you ask me
How long I've been waiting
Set down on the road
With the gunshots exploding
I'm waiting for you
In the gloom and the blazing
I'm waiting for you

I sing like a slave I know
I should know better
I've learned all my lessons
Right down to the letter
And still I go on like this
Year after year
Waiting for miracles
And shaking with fear

Why don't you answer
Why don't you come save me
Show me how to use
All these things
That you gave me
Turn me inside out
So my bones can save me
Turn me inside out

You've come this close
You can come even closer
The gunshots get louder
And the world spins faster
And things just get further
And further apart
The head from the hands
And the hands from the heart

One thing that's true
Is the way that I love him
The earth down below
And the sky up above him
And still I go on like this
Day after day
Still I go on like this

Now I've said this
I already feel stronger
I can't keep waiting for you
Any longer
I need you now
Not someday
When I'm ready
Come down on the road
Come down on the road

My name, my name
Nothing is the same
I won't go back
The way I came.."

domingo, 15 de maio de 2011

Sempre o bem e o mal



"Sempre o bem e o mal. Todo o bem todo o mal de todos nós. De cada um por si. De todos nós. O bem e o mal nos olhos acesos pela noite com uma luzinha viva de tédio e de desejo. (...) Não nos devemos agarrar à vida porque a vida é pecado. Mas se não nos agarrarmos à vida enquanto dura o que nos ficará depois nas mãos vazias? Atam-nos as mãos e os braços e os pés e as pernas: Agora és minha. Agora podes começar a ser feliz. Somente em mim, comigo, sozinha nunca mais. Não pode ser. Eu tenho de partir. Seguir o meu caminho. Meu Deus, é a única coisa que te peço. Seja feita a minha vontade sobre mim sobre a terra. Por algum tempo ainda por favor seja feita."


Y. K. Centeno
As Palavras Que Pena
in Três Histórias de Amor

Foi pena



"Foi pena.
Foi pena porque eu já estava quase totalmente purificada, virgem de emoções, sensações e desejos, e no momento em que perdi a música comecei a naufragar e a afundar-me novamente naquele espaço hostil.
(...)
De qualquer modo a música lavou o fumo dos cigarros, lavou o riso e o vinho, lavou-me o corpo e a alma. A música foi como uma tempestade de chuva, cinzenta, miúda, penetrante e lavou-me de ti.
Sinto-me outra vez capaz de pensar."


Y. K. Centeno
Quem Se Eu Gritar
in Três Histórias de Amor

sábado, 14 de maio de 2011

Je suis le plus malade des surrealistes




"Uma estátua afectou-te os sentidos. Em ti o corpo e o espírito estão tremendamente ligados, mas é o espírito que deve vencer. Pressinto em ti um mundo de sentimentos ainda por nascer e sou eu o exorcista que os vai acordar. Tu própria não tens consciência deles. Estás a pedir para ser acordada com todos os teus sentidos femininos que em ti também são espírito. Sendo o que és, deves compreender a dolorosa alegria que sinto por te haver descoberto. O destino tem-me concedido mais do que alguma vez já sonhei ter. E, tal como todas as coisas trazidas pelo destino, esta veio de maneira fatal, sem hesitações e tão bela que me aterra. O meu próprio espírito e a minha vida são formados de clarões e eclipses que jogam constantemente dentro de mim e portanto à minha volta e em tudo quanto amo. Para aqueles que amo serei sempre uma fonte de dor profunda. Já observaste que por vezes tenho intuições, rápidas adivinhações, e outras vezes estou completamente cego. Então a coisa mais simples me escapa. Vais precisas de toda a tua subtil compreensão para aceitar esta simbiose de trevas e de luz.

(...)

Adoro os teus silêncios, são como os meus. És a única criatura diante de quem não me aflijo por causa dos meus próprios silêncios. O teu silêncio é veemente, carregado de essências, um silêncio estranhamente vivo, como um alçapão aberto por cima de um poço, donde se pode ouvir o secreto murmúrio da terra.

(...)

Sinto esse teu comovente silêncio falar-me e dá-me vontade de chorar de alegria. Tu habitas um domínio diferente do meu, és o meu complemento. Se é verdade que as nossas imaginações amam as mesmas imagens, desejam as mesmas formas, física e organicamente, tu és o calor, eu o frio. És flexível, languida, enquanto eu sou inquebrantável. Calcinado. Como um mineral. O meu receio é perder-te durante um desses períodos em que metade de mim se separa da outra. Que divina alegria não seria possuir um ser como tu, tão evanescente, tão ilusório.

(...)

Contigo posso regressar dos abismos em que tenho vivido. Tenho-me esforçado por revelar os trabalhos da alma por detrás da vida, as suas mortes. Só transcrevo abortos. Eu próprio sou um abismo absoluto. Só me consigo imaginar como um ser fosforescente dos combates que travo com as trevas. Sou quem tem mais profundamente sentido as hesitações da língua em relação ao pensamento. Sou quem melhor tem captado as suas escorregadelas, os ângulos das palavras perdidas. Sou quem tem atingido estados que ninguém se atreve a nomear, estados de alma malditos. Conheço esses abortos do espírito, a consciência dos fracassados, o reconhecimento das vezes em que o espírito cai na escuridão e se perde. Tem sido esse o meu pão de cada dia, a minha constante, obsessiva busca do irrecuperável.

(...)

Toda a beleza que suponha perdida no mundo está em ti e à tua volta. Se me encontro perto de ti, o meu ser não se contrai nem se arrepia. A fadiga terrível que me consome abranda. Essa fadiga, quando não estou contigo, é tão descomedida que se compara à que Deus deve ter sentido no princípio do mundo, ao ver todo o universo incriado, informe, a pedir para ser criado. Uma fadiga de língua que procura pronunciar coisas impossíveis até se torcer num nó e me sufocar. Uma fadiga desta massa de nervos que tenta suster um mundo em frangalhos. Uma fadiga dos sentimentos, do fervor dos meus sonhos, da febre das ideias, da intensidade das minhas alucinações. Uma fadiga do sofrimento dos outros e do meu. Sinto o meu próprio sangue trovejar dentro de mim e o horror de tombar dentro dos abismos. Mas se cairmos juntos, eu e tu, não hei-de ter medo. Cairemos nos abismos, mas tu levarás as tuas fosforescências até ao fundo mais fundo. Podemos tombar juntos e juntos subir no espaço. Eu estava constantemente exausto por causa dos meus sonhos, não pelos sonhos mas pelo medo de não ser capaz de regressar. Desnecessário regressar, agora. Hei-de encontrar-te em toda a parte aonde for, nas mesmas misteriosas regiões. Tu também conheces a linguagem e os pressentimentos dos nervos. Tu hás-de saber sempre o que estou a dizer, ainda que o não diga."


Anais Nin
in Debaixo de uma Redoma

quinta-feira, 12 de maio de 2011

Green Grass


"Lay your head where my heart used to be
Hold the earth above me
Lay down in the green grass
Remember when you loved me

Come closer don't be shy
Stand beneath a rainy sky
The moon is over the rise
Think of me as a train goes by

Clear the thistles and brambles
Whistle 'Didn't He Ramble'
Now there's a bubble of me
And it's floating in thee

Stand in the shade of me
Things are now made of me
The weather vane will say...
It smells like rain today

God took the stars and he tossed 'em
Can't tell the birds from the blossoms
You'll never be free of me
He'll make a tree from me

Don't say good bye to me
Describe the sky to me
And if the sky falls, mark my words
We'll catch mocking birds

Lay your head where my heart used to be
Hold the earth above me
Lay down in the green grass
Remember when you loved me"



* Cibelle
(original de Tom Waits)

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Pirata



"Sou o único homem a bordo do meu barco.
Os outros são monstros que não falam,
Tigres e ursos que amarrei aos remos,
E o meu desprezo reina sobre o mar.

Gosto de uivar no vento com os mastros
E de me abrir na brisa com as velas,
E há momentos que são quase esquecimento
Numa doçura imensa de regresso.

A minha pátria é onde o vento passa,
A minha amada é onde os roseirais dão flor,
O meu desejo é o rastro que ficou das aves,
E nunca acordo deste sonho e nunca durmo."


Sophia de Mello Breyner Andresen
in O Mar (poemas)

segunda-feira, 9 de maio de 2011

A importância das trevas



"O monge disse-lhe: O homem recusa o silêncio. Deus não se reconhece no homem. Quantas vezes terá o mundo de cair? Quantas vezes terá o Senhor de desviar a face, de voltar a olhar, de perdoar? Mas haverá alguma vez perdão universal? O homem não o merece.

Os seis dias correspondem aos seis caminhos, às seis aberturas do abismo, e finalmente aos seis canais que conduzem as águas para o abismo. Os seis dias foram criados pelo Verbo e designam as luzes que emanam do Verbo e iluminam o mundo.
O Verbo nasceu da união da luz activa e da luz passiva, denominada trevas.

A importância das trevas."


* Y. K. Centeno
in As Muralhas

Destruímos sempre aquilo que amamos



"Destruímos sempre aquilo que amamos,
em campo aberto, ou numa emboscada;
alguns com a leveza do carinho
outros com a dureza da palavra;
os cobardes destroem com um beijo
os valentes destroem com a espada."

* Oscar Wilde