domingo, 22 de agosto de 2010

Começámos como um mineral..



"Começámos
como um mineral,
Irrompemos na vida vegetal e no estado animal,
como seres humanos, em seguida,
e esquecemos sempre os nossos estados anteriores,
salvo no início da Primavera,
quando nos recordamos um pouco
de ser verdes mais uma vez.
É assim que um jovem se volta para um professor.
É assim que um bebé se inclina para o seio,
sem saber o segredo do seu desejo,
mas voltando-se por instinto.
A humanidade é conduzida ao longo de um percurso evolutivo
através da sua migração de inteligências.
E apesar de parecer que dormimos,
há uma vivacidade interior
que direcciona o sonho.
Com o tempo irá assombrar-nos de volta
para a verdade de quem somos."
*
*
* Rumi, Século XIII
* imagem de Alex Grey

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Fértil Lua Caminho


"Põe-te a caminho com o pé certo
Parte da melhor maneira e não haverá problemas
*
é essa a essência
*
Chegou o momento de agir - agora chefia e segue...
Segue a água até ao rio, como o rio,
Segue o caminho que indicas, segue-o -
*
Fértil, Lua, Caminho: diz
*
Segue o caminho que se abre, o caminho primaveril,
Ao luar da lua e a luz do amor,
Segue o teu coração e segue na escuridão
Guiado como és: a orientação está no teu caminho
*
Neste reverso lua-sombra-prata do dia"
*
*
* Continuação (17) * Sui *
in I CHING - O Livro das Mutações
Martin Palmer / Jay Ramsay / Zhao Xiaomin

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Aprendiz de Viajante



"Um dia li num livro: «Viajar cura a melancolia».
Creio que na altura, acreditei no que lia. Estava doente, tinha quinze anos. Não me lembro da doença que me levara à cama, recordo apenas a impressão que me causara, então, o que acabara de ler.
Os anos passaram - como se apagam as estrelas cadentes - e, ainda hoje, não sei se viajar cura a melancolia. No entanto, persiste em mim aquela estranha sensação de que lera uma predestinação.
A verdade é que desde os quinze anos nunca mais parei de viajar. Atravessei cidades inóspitas, perdi-me entre mares e desertos, mudei de casa quarenta e quatro vezes e conheci corpos que deambulavam pela vasta noite... Avancei sempre, sem destino certo.
Tudo começou a seguir àquela doença.
Era ainda noite fechada. Levantei-me e parti. Fui em direcção ao mar. Segui a rebentação das ondas, apanhei conchas, contornei falésias; afastei-me de casa o mais que pude. Vi a manhã erguer-se, branca, e envolver uma ilha; vi crepúsculos e noites sobre um rio, amei a existência.
Dormia onde calhava: no meio das dunas, enroscado no tojo, como um animal; dormia num pinhal ou onde me dessem abrigo, em celeiros, garagens abandonadas, uma cama...
E quando regressei, regressei com a ânsia do eterno viajante em mim.
Hoje sei que o viajante ideal é aquele que, no decorrer da vida, se despojou das coisas materiais e das tarefas quotidianas. Aprendeu a viver sem possuir nada, sem um modo de vida. Caminha, assim, com a leveza de quem abandonou tudo. Deixa o coração apaixonar-se pelas paisagens enquanto a alma, no puro sopro da madrugada, se recompõe das aflições da cidade.
A pouco e pouco, aprendi que nenhum viajante vê o que outros viajantes, ao passarem pelos mesmos lugares, vêem. O olhar de cada um, sobre as coisas do mundo, é único, não se confunde com nenhum outro.
Viajar, se não cura a melancolia, pelo menos purifica. Afasta o espírito do que é supérfluo e inútil; e o corpo reencontra a harmonia perdida - entre o homem e a terra.
O viajante aprendeu, assim, a cantar a terra, a noite e a luz, os astros, as águas e a treva, os peixes, os pássaros e as plantas. Aprendeu a nomear o mundo.
Separou com uma linha de água o que nele havia de sedentário daquilo que era nómada; sabe que o homem não foi feito para ficar quieto. A sedentarização empobrece-o, seca-lhe o sangue, mata-lhe a alma - estagna o pensamento.
Por tudo isto, o viajante escolheu o lado nómada da linha de água. Vive ali, e canta - sabendo que a vida não terá sido um abismo, se conseguir que o seu canto ou estilhaços dele, o una de novo ao Universo.
*
*
* Al Berto
in O Anjo Mudo