sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

* Relembrando Litha I



Por vezes o passado assalta-a, sem avisar, sem se anunciar, para depois partir da mesma maneira, ferozmente.
Lembra-se de Fausto, aquele que embebedou as suas noites, a quem ela se deixou abandonar, para se perder. Permitiu-lhe o beijo, o toque, a sua entrada subtil no seu corpo de mulher-criança. Acendeu-se o fogo da paixão.. e agora restavam apenas as cinzas.
Conhecera-o na noite mais curta do ano, o Solstício, Litha, o momento em que o Sol, manifestação do Deus, atinge a sua plenitude e parte em busca da Terra do calor. Mantendo uma ligação manifesta com os ritmos da Natureza, encontrara maneira de comungar com os ritmos sabáticos no seu íntimo.

Através da sua arte de dançar com o fogo, seu elemento, contempla a luz de tudo o que a envolve, ignora os fantasmas que vivem dentro de si. A dança eufórica comanda o seu corpo já embriagado pelas comemorações sabáticas. O auge do calor, a multidão em seu redor. Fecha os olhos, tentando esquecer as feridas que a vida lhe trouxera, as paixões fugidias, as noites de prazer selvagem, entrega casual, promiscuidade. Oferece o seu corpo à música, num modo mais intenso de existir. Traz em si o odor da lembrança esquecida, demónios adormecidos que na noite a deixam livre para algo mais.
Não sabia se teria aprendido o que precisa para continuar em frente, ainda sente em si muita insegurança, muito desejo de ser sempre quem não era. A vida apresentava-lhe os mais belos desafios, mas continuava a sobreviver sem ser capaz de lutar por aquilo que amava, de decidir, de ser. Em si ardia o desejo de encontrar aquela pessoa capaz de desvendar os segredos da sua alma, apenas com o sentir, com o olhar.. Como se tal fosse possível sem primeiro sentir o desejo da sua alma, a missão talvez.

O choque brusco de dois corpos, violência impensada. Ele dirige-se a ela, furioso primeiro, risonho quando realmente se olham nos olhos. Não sabiam nesse momento que os seus corpos tinham sido atraídos por uma força que não entendiam. Ligam-se assim. Ela pede-lhe desculpa, não se tinha apercebido. Ele sorri apenas, deixando o olhar denunciar o desejo que sentia. A conquista do outro, o encontro inesperado, e quando dá por si não consegue desviar o olhar daquele homem que se cruzara na sua noite, no seu caminho. Um círculo dançante, ele do outro lado, falando casualmente com alguém, o desejo a crescer no seu peito. Queria-o conquistar, mas não se esforça muito, não sabia como, não era iniciada nos jogos de sedução. Limita-se a olhá-lo, de longe, dançando quando o seu corpo lhe pede, sorrindo quando a alma sente. E a noite trouxe o dia, anunciado pela Aurora, guardiã dos sonhos dos madrugadores. O primeiro dia de Verão.
Fecha os olhos para o céu, esticando os braços num agradecimento aos Deuses, pelo solstício, pelo calor que lhe invadia o corpo, que preenchia o espaço vazio entre ela e o mundo que a rodeava. Quando volta a abrir os olhos, ele está diante de si, sorrindo. Quem sabe o destino quisera-os ali naquela noite, agora transformada em dia. Um convite para um acordar sem dormir, para um novo dia, celebrar o Verão, os frutos maduros. Fausto, era o seu nome. Viera de um país distante, apenas para conhecer outras paisagens, e agora estava ali, diante de Miriam, agradecendo-lhe a ousadia daquele toque impensado.
Vem comigo, diz ela. Quero-te mostrar um sítio mágico, uma praia esquecida nas bordas de uma serra.

Guia-o pelos caminhos de terra até ao seu refúgio junto ao mar, na companhia do sol que brilha em todo o seu esplendor. Deita-se na areia a contemplar o horizonte, o calor que se entranha por todos os poros do seu corpo. Despe-se lentamente, descobrindo a coragem da nudez diante daquele homem que tanto a observa. Quero-me vestida de céu.. e sentir-me que nem estrela do mar, protegida por toda a Natureza que me rodeia e preenche.. E assim perde o medo de enfrentar o seu próprio reflexo. Aproxima-se das águas cristalinas e mergulha profundamente, sem dizer uma palavra, sabendo que nada que pudesse sair da sua boca poderia expressar o que vivia na sua alma. Sente o olhar dele sobre o seu corpo, um olhar de desejo, e aos pouco, o seu íntimo foi-se revelando à pessoa que ele era.
Falavam de tudo o que se lembravam, de poesia, música e vida, passando por momentos de silêncio compartilhado. Um silêncio que fala por si, que fala da verdade, do que as palavras não conseguem exprimir. Miriam abre o Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa, que ele traz consigo. Lê a primeira frase onde o seu olhar pousa: “Na grande claridade do dia o sossego dos sons é de ouro também. Há suavidade no que acontece. Se me dissessem que havia guerra, eu diria que não havia guerra. Num dia assim nada pode haver que pese sobre não haver senão suavidade”... Deixa-se embalar deitada ao sol que nem salamandra, permite que o sono trespasse o seu corpo e adormece por instantes.

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