Ao longo da sua viagem de barco consegue sentir os últimos raios de sol a acariciar-lhe o rosto. "Olhar calado o rio, é ser o olhar, ser o olhado" (1), pensa. Perde-se na ondulação que o movimento constante do barco provoca. A luz do sol que se esconde reflectida na água. Deixa-se mergulhar em alma nas águas profundas. De si partiriam todos os caminhos para a sabedoria. Ser apenas parte do rio, pequena e instável, a dançar com a melhodia das próprias ondas.
A Primavera já começa a dar sinais de si.. Traz consigo uma nova onda de vivificação e rompimento. Chega agora a altura de esquecer frustrações e pesares, de invocar a energia geradora e tentar alcançar o que se quer.
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É agora, perante o crepúsculo que viajo rumo à cidade mágica. A noite anuncia-se em mim. Os sonhos e desejos que ainda não foram descobertos ameaçam emergir. Lisboa, cidade mágica, envolta pela luz dourada da noite que ainda não chegou.. em ti me perderei, uma vez mais, pois tenho um certo gozo em fazê-lo. Cantando as mesmas melodias, as mesmas confissões renovadas..
E continuarei a perder-me, até me encontrar.
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Lisboa que anoitece. Erguem-se os véus na cidade mágica, a ansiedade de os desvendar nasce dentro dela, a ansiedade de descobrir o mistério por detrás de cada rua, cada esquina, cada janela.. Aprendendo lições esquecidas, que a alma não morre na sua eternidade. As promessas que fazemos antes de encarnar neste corpo físico. As lições que têm de ser aprendidas, o que sabemos desde sempre e que hoje em dia esquecemos.
Caminha pelas ruelas da cidade, deixando-se guiar pela melodia da flauta que envolve as paredes, as casas.. Aquela flauta mágica, cujo som tem o dom de domar dragões, de encantar os rostos das pessoas que caminham a seu lado. A Lua anuncia-se nos seus véus. Lua da Sementeira, do Corvo que revela o seu lado místico e oculto. Raramente se mostra, mas quando o faz a sua luz fere-a, e encontra na sua forma o brilhar.
Caminhante errante. Vivia de sonhos, na esperança de cruzar o céu e a terra neste mundo. A Espera, Esperava-o, porque não tinha aprendido a fazer outra coisa. Chamava-o, mas a incerteza a toldar-lhe a voz. Não sabia se ele a ouviria..
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Por vezes o corpo anseia pela incerteza da noite, olhares ao acaso, máscaras que se erguem para se disfarçar o que não se quer ver. Copos perfurmados de vinho doce. Personagens que se avistam no meio da euforia de uma noite de carnaval. Uma noite para se esquecer de si, apenas mais uma. Uma noite em que a chuva despertava os corpos abandonados. A chuva tornava-se guia dos passos nos caminhos insondáveis das ruelas de luxúria.
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Encontra Petra na noite, sorriem ao cruzar o olhar.
- Hoje pensei em ti, amante da lua - diz Petra cumprimentando-a - Estive a ler sobre mitologia. Sobre Ártemis e Apolo, irmãos gémeos, filhos de Zeus.
Apolo, dotado de uma beleza singular, era o deus que todos os dias conduzia o seu carro de luz pelos céus, doando aos homens toda a sua energia e força. Era também o deus da música, e encantava todos com a melodia da sua lira.
- Falando em música - lembra-se Miriam - Esta noite ouvi uma doce melodia ao caminhar pelas ruas da cidade. Parecia envolver os caminhos todos, e não consegui perceber de onde vinha aquele som capaz de domar dragões.
- Sei do que falas - disse Petra com um sorriso - Eu vi o rapaz que tocava essa flauta. Com um certo mistério no olhar, e também me conseguiu encantar com a sua melodia. Mas deixa-se falar-te sobre Ártemis, ou Diana, no seu nome romano..
Ártemis tornou-se a deusa da Lua e da caça. Quando era ainda criança, pediu a Zeus, seu pai, que a mantivesse virgem, lhe desse um arco e flecha, e também para que carregasse a luz em si, como o seu irmão Apolo. Zeus assim fez, dando-lhe igualmente ninfas para que fossem suas servas e guardiãs. O seu pequeno exército pessoal. Então assim ficaram Apolo, que tinha o poder de se iluminar por si mesmo, yang, e Ártemis, yin, que não gerava luz, mas que reflectia a do seu irmão.
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De novo os opostos, qualidades masculina e feminina, luz e sombra, activo e passivo.
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Vagueavam pelas ruas da cidade mágica, ainda encantada pela música de alguém que sabia domar dragões. Beberam e brindaram às chuvas que denunciavam a chegada da Primavera. Dançavam nas suas vestes de fogo e sorriam à noite que as acolhia.
O vinho perfurmado. Apenas mais um copo, o suficiente para alegrar a mente e divagar nas conversas que surgem com um piscar de olhos. É então que entram no último bar da noite, refugiando-se da chuva que se fazia sentir e que as forçava a procurar um porto de abrigo.
Ali estava ele, um perfeito personagem, e parecia que sempre ali tinha estado sem que o tempo tocasse no seu rosto. Tocando a sua flauta mágica naquele local de abrigo. O domador de dragões. Calmo e sereno, com o seu cabelo escuro caído sobre os ombros. Algo lhe chama a atenção para ele. É bonito, não o pode negar, mas não era decerto a sua beleza que a tinha fascinado..
Ele dirige-se a ela - Sabes, dizem que a chuva purifica-nos a alma.
- Sim, mas para quem tem a coragem de se purificar verdadeiramente - responde Miriam desviando o olhar para as gotas que caiam na rua.
- Estou farto de estar aqui entre estas quatro paredes e preciso de sentir a noite. Fazes-me companhia? - estende-lhe a mão, desafiando-a - O meu nome é Lucas, já não sou um estranho para ti.
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Por vezes a chuva e a noite entranham-se na pele. Devoram com o desejo de passos errantes, passos que levam aos abismos, mas que fazem crescer. Purificam, na sua ânsia de evolução. A água cobrindo os cabelos, pequenas gotas beijando os rostos e desaguando num rio de sensações e emoções. Purificam, na sua ânsia de libertação. Gritaram pela vida nas ruas da cidade, seguindo os rios de memórias esquecidas. Dançaram com os corpos colados, com a naturalidade de quem se conhece desde sempre. A chuva e a noite. A chuva tornou-os vulneráveis. A noite esqueceu as suas máscaras e pôs a descoberto novos rostos..
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(1) - retirado do texto "O Jardim Secreto" de Gonçalo Castelo Branco in Os Fazedores de Letras, Nº38 Março de 2001
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