quarta-feira, 19 de janeiro de 2011
Morte de Rimbaud
I.
todos os pássaros sossegaram.
as crianças desceram das árvores, guardaram os jogos, recolheram a casa.
a noite está próxima.
levanto a cabeça e deixo a voz deambular por dentro deste silêncio de água e de estrelas.
a noite está próxima.
deixo o corpo escorregar na poeira luminosa.
acendo um cigarro, ponho-me a falar com o meu fantasma.
longe daqui, a cidade enfeitou-se com seus crimes de néon, com suas traições.
ouço hélices de barcos, motores, quando um rosto esvoaça ao alcance da mão.
a verdade é que passei a vida a fugir, de cidade em cidade, com um sussurro cortante nos lábios.
e atravessei cidades e ruas sem nome, estradas, pontes que ligam uma treva a outra treva.
caminho como sempre caminhei, dentro de mim - rasgando paisagens, sulcando mares, devorando imagens.
o absinto, esse álcool que me permitiu medir o tempo no movimento dos astros.
e vi a vida como um barco à deriva, vi esse barco tentar regressar ao porto - mas os portos são olhos enormes que vigiam os oceanos. servem para levarmos o corpo até um deles e morrer.
a noite está próxima.
vejo acenderem-se mãos voláteis, e uma sede de poços e de nomadismo.
sulco a areia que sitia as cidades para trás abandonadas.
abro fendas na memória, e a noite surge com suas cidades queimadas, desertas - e o vento... o vento cintila onde cresce o lobo que me ronda o sono.
estendo a mão, pego no revólver, mas nada acontece.
de nada me serviria inventar outra vez o rio das palavras, de nada me serviria saber a geometria exacta dos cristais, ou redesenhar o corpo e aperfeiçoa-lo.
fico assim, inerte, à beira da noite... olhando o brilho da lua jorrando águas.
o regresso nunca foi possível.
o verdadeiro fugitivo não regressa, não sabe regressar. reduz os continentes a distâncias mentais.
aprende a fala dos outros - e, por cima dele, as constelações vão esboçando o tormentoso destino dos homens.
pressinto uma sombra a envolver-me, ouço música... espirais de som subindo aos subúrbios da alma.
e acendo o lume das pirâmides, onde o tempo não foi inventado, e renego a alegria.
não semearei o meu desgosto, por onde passar.
nem as minhas traições.
II.
não consigo dormir, nunca mais.
ando de um lado para o outro, canso o corpo, enquanto a língua segrega uma saliva exterminadora.
lá fora, dentro da noite, os chacais, as hienas cercam a casa. mas o pior é este chacal que me esfarrapa as vísceras, esta hiena que me devora o sonho.
pela janela vejo a linha crepuscular da duna.
um novo corpo liberta-se do meu e caminha fora de mim - vejo-o afastar-se em direcção aos nevoeiros das cidades.
sei, nesse instante, que nenhum abraço chega para atenuar a dor da separação.
afastados, tudo o que nos resta é começar a imitar a vida um do outro.
o que dissemos perdeu o sabor e o sentido.
harrar, aden, lisboa, este silêncio... capaz de ordenar e desordenar o mundo, o canto sublime das miragens.
mas vai chegar o inverno, e a tristeza dos dias começa a zumbir à roda da cabeça.
abri a janela.
avisto uma nesga de céu limpo.
lembro-me de quando trocava um sorriso por um verso, ou um insulto.
imitávamos assim a felicidade.
o sol fulmina a memória. limpa-a da crueldade do passado.
a vida, aqui, reduz-se a efémeros passos, surdas gargalhadas, ideias que se evaporam lentamente.
enfim, o mundo não é assim tão grande...
e a vida, afinal, é como as orquídeas - reproduz-se com dificuldade.
mas estou cansado.
os olhos fecham-se-me com o peso das paixões desfeitas.
imagens, imagens que se colam ao interior das pálpebras - imagens de neve e de miséria, de cidades obsessivas, de fome e de violência, de sangue, aquedutos, de esperma, de barcos, de comboios, de gritos... talvez... talvez uma voz.
o desejo de um sol impiedoso, sobretudo enquanto dormia.
e embarquei num cargueiro, desertei em java, pensei mesmo construir uma casa.
mas não foi possível.
ainda vejo aquelas árvores cobertas de ossos luminosos, e a duna incendiada, o deserto onde posso continuar a reconstruir o universo.
escavo no coração um poço de sal, para dar de beber ao viajante que fui.
deixo o vento arrastar consigo a infindável caravana de ilusões.
e digo: que tudo se afogue na gordura das manhãs, que tudo silencie... e uma língua de fogo atinja os livros que não escreverei.
III.
os dias estão cheios de cartas e de recomendações, de amigos que partem para sempre, ou adoecem, de recados e de intrigas, de contas intermináveis, de ouro, de corpos, de fortuna e de infortúnios.
de morte, e de cães feridos a uivar à porta da desolação.
uma espécie de miséria e de orgulho, escorrem no fundo de mim. e talvez seja a mistura venenosa da miséria com o orgulho que me há-de perder...
não tenho mais nada a dizer. os poemas morreram.
fugir tornou-se uma obsessão, ou então é a melhor maneira de encenar o desespero.
bebi águas inquinadas.
vi o corpo suspenso no rebordo dos poços, o coração batendo descontrolado.
mas a morte, quando se aproxima, é uma coisa simples... vem comer à mão a cinza melodiosa dos dias.
por isso sei que, ao amanhecer, posso perguntar:
quantas áfricas murcharam na boca do amor?
quantas feras despedaçadas foram comidas ao entardecer?
quantos homens conseguiram apaziguar o relâmpago da paixão?
quantos desejos ficaram abandonados na escuridão intacta dos quartos?
a qual dos demónios me vender?
que besta suja será preciso adorar?
em que sangue contaminado mergulharei a língua?
que fogo estranho é este? que devora a beleza interior das coisas...
que mentira me poderá salvar?
uma golada de veneno e eis que se acende o talento.
o rumor precioso das sílabas. o choro e o riso.
o brilho gelado das imagens.
então, ergo o cachimbo e fumo um tempo futuro, ajeito o cinturão onde guardo o outro - e vou pelo engano das palavras.
descubro a febre, a ânsia do eterno viajante.
abro as mãos, solto as borboletas e os pássaros - que dizem ser a alma dos mortos.
um espelho onde não me reconheço. mas o pior é que nunca acreditei no que me disseram, e parti o espelho.
o azar nunca mais me largou, e também não posso dizer que os negócios me tenham corrido bem.
foi maldição, dizem.
paciência. mas não há maldição sem desejo - e eu não páro de desejar, sôfrego... capaz de arriscar a vida e a razão.
ou de matar.
IV.
um rasgão de luz sobre a pele, dormes na seiva doce das manhãs.
mas sabes que só há repouso para o sofrimento quando se entra no primeiro dia dos dias sem ninguém.
a dor, a perna amputada, a chaga viva, o sangue a latejar - o mapa da abissínia.
o sol enterra-se nas areias.
viajo, sem me mexer desta enxerga branca.
tento encontrar espaço para a lucidez do meu silêncio.
no lugar do poema coalha o ouro das geadas, e os animais são formas etéreas que se me colam ao rosto.
o que morre, quase não faz falta...
dantes ouvia o mar... bastava encostar a cabeça ao peito um do outro.
mas um homem em cujo coração se tenha concentrado toda a fúria de viver, será um homem feliz?
não sei se posso querer alguma eternidade... não sei...
o que vejo já não se pode cantar.
que horas serão dentro do meu corpo?
que mineral vermelho jorraria se golpeasse uma veia... não sei... não sei...
o que vejo já não se pode cantar.
lembro-me duma cabeça rebelde flutuando junto à janela.
mas a casa está repleta de gemidos, vai amanhecer, não me lembro de mais nada.
o que vejo já não se pode cantar.
recomeço a fuga, a última, e nela hei-de morrer de olhos abertos, atento ao mínimo rumor, ao mais pequeno gesto - atento à metamorfose do corpo que sempre recusou o aborrecimento.
o que vejo já não se pode cantar.
caminho com os braços levantados, e com a ponta dos dedos acendo o firmamento da alma.
espero que o vento passe... escuro, lento. então, entrarei nele, cintilante, leve... e desapareço.
* Al Berto
morte de rimbaud
dita em voz alta no coliseu de lisboa,
a 20 de novembro de 1996 *
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
li,estava perdido ele,as vezes estamos perdidos em sujidades que nao nos saem do corpo...esta bonito,"o que vejo ja nao posso cantar" mas espero que se ele adormeceu e voltou a acordar no amanha estive-se um grande Sol cheio de brilha e brilha! que de tanto calor com brilhos bons em vez de o mar se evaporar evaporou a puluiçao que a ele prendia..para la longe um buraco negro que a limpe...e entao nesse sol Brilha! Brilha!com tanto calor ele mergulhou no mar/rio ja limpo e sorriu :) :) :) e tu la passeavas de manhã.. olhas-te para ele e num sorriso de Sol lhe disses-te :-brilha! e o Sol sorriu para ti e te disse Brilha! brilha! beij.obrigada :) Brilha ps.espero que estejas bem :)Brilha bem :)
ResponderEliminar