sábado, 14 de maio de 2011

Je suis le plus malade des surrealistes




"Uma estátua afectou-te os sentidos. Em ti o corpo e o espírito estão tremendamente ligados, mas é o espírito que deve vencer. Pressinto em ti um mundo de sentimentos ainda por nascer e sou eu o exorcista que os vai acordar. Tu própria não tens consciência deles. Estás a pedir para ser acordada com todos os teus sentidos femininos que em ti também são espírito. Sendo o que és, deves compreender a dolorosa alegria que sinto por te haver descoberto. O destino tem-me concedido mais do que alguma vez já sonhei ter. E, tal como todas as coisas trazidas pelo destino, esta veio de maneira fatal, sem hesitações e tão bela que me aterra. O meu próprio espírito e a minha vida são formados de clarões e eclipses que jogam constantemente dentro de mim e portanto à minha volta e em tudo quanto amo. Para aqueles que amo serei sempre uma fonte de dor profunda. Já observaste que por vezes tenho intuições, rápidas adivinhações, e outras vezes estou completamente cego. Então a coisa mais simples me escapa. Vais precisas de toda a tua subtil compreensão para aceitar esta simbiose de trevas e de luz.

(...)

Adoro os teus silêncios, são como os meus. És a única criatura diante de quem não me aflijo por causa dos meus próprios silêncios. O teu silêncio é veemente, carregado de essências, um silêncio estranhamente vivo, como um alçapão aberto por cima de um poço, donde se pode ouvir o secreto murmúrio da terra.

(...)

Sinto esse teu comovente silêncio falar-me e dá-me vontade de chorar de alegria. Tu habitas um domínio diferente do meu, és o meu complemento. Se é verdade que as nossas imaginações amam as mesmas imagens, desejam as mesmas formas, física e organicamente, tu és o calor, eu o frio. És flexível, languida, enquanto eu sou inquebrantável. Calcinado. Como um mineral. O meu receio é perder-te durante um desses períodos em que metade de mim se separa da outra. Que divina alegria não seria possuir um ser como tu, tão evanescente, tão ilusório.

(...)

Contigo posso regressar dos abismos em que tenho vivido. Tenho-me esforçado por revelar os trabalhos da alma por detrás da vida, as suas mortes. Só transcrevo abortos. Eu próprio sou um abismo absoluto. Só me consigo imaginar como um ser fosforescente dos combates que travo com as trevas. Sou quem tem mais profundamente sentido as hesitações da língua em relação ao pensamento. Sou quem melhor tem captado as suas escorregadelas, os ângulos das palavras perdidas. Sou quem tem atingido estados que ninguém se atreve a nomear, estados de alma malditos. Conheço esses abortos do espírito, a consciência dos fracassados, o reconhecimento das vezes em que o espírito cai na escuridão e se perde. Tem sido esse o meu pão de cada dia, a minha constante, obsessiva busca do irrecuperável.

(...)

Toda a beleza que suponha perdida no mundo está em ti e à tua volta. Se me encontro perto de ti, o meu ser não se contrai nem se arrepia. A fadiga terrível que me consome abranda. Essa fadiga, quando não estou contigo, é tão descomedida que se compara à que Deus deve ter sentido no princípio do mundo, ao ver todo o universo incriado, informe, a pedir para ser criado. Uma fadiga de língua que procura pronunciar coisas impossíveis até se torcer num nó e me sufocar. Uma fadiga desta massa de nervos que tenta suster um mundo em frangalhos. Uma fadiga dos sentimentos, do fervor dos meus sonhos, da febre das ideias, da intensidade das minhas alucinações. Uma fadiga do sofrimento dos outros e do meu. Sinto o meu próprio sangue trovejar dentro de mim e o horror de tombar dentro dos abismos. Mas se cairmos juntos, eu e tu, não hei-de ter medo. Cairemos nos abismos, mas tu levarás as tuas fosforescências até ao fundo mais fundo. Podemos tombar juntos e juntos subir no espaço. Eu estava constantemente exausto por causa dos meus sonhos, não pelos sonhos mas pelo medo de não ser capaz de regressar. Desnecessário regressar, agora. Hei-de encontrar-te em toda a parte aonde for, nas mesmas misteriosas regiões. Tu também conheces a linguagem e os pressentimentos dos nervos. Tu hás-de saber sempre o que estou a dizer, ainda que o não diga."


Anais Nin
in Debaixo de uma Redoma

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