segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Rascunhos I - Teoria da felicidade




Decidi-me a deixar fluir o pensamento, criar um registo para que a memória não me traia num dia longínquo. Sim, porque o tempo afinal acaba por passar, e a sua passagem que nem cometa nem sempre é amigável para com o corpo, ou a mente.

Quero falar-te de um tempo imutável, um que não passa, ou que é tão ligeiro que não nos apercebemos da sua passagem. Um tempo que não sentimos na pele, mas que vamos carregando na alma, confusos entre o passado e o futuro, sentindo a dor do presente no ser.
Quero falar-te de tanto. Quero-te, no silêncio carregado de incertezas, na desenfreada busca de um sentido para este caminho, para todas estas emoções que nos atormentam e renovam os dias. 
Quero dizer-te que sofro esta noite, ao me deparar com os nossos momentos e sentimentos todos entrelaçados. É necessário deixar a descoberto, aceitar e descartar o que não serve mais à dimensão dos nossos anseios.
"Both fictions and memories are recalled and retold. They're both forms of stories. Stories are the way we learn. Stories are how we understand each other." Iain Reid
Lembrava-se dos seus tempos de mulher-criança, ainda na descoberta da sua maturidade latente, ainda a libertar a infância que se ia soltando a cada gesto, a cada vivência. Vinte anos.. Dariam para contar uma vida, uma história. Tentava separar as memórias da ficção.. O toque e a sua rudeza na pele das ilusões de uma mente em busca da sua consciência.

Rascunhos.. do hoje.
Sei que tenho uma missão contigo, longe de romantismos e eufemismos, embora também goste de lhes deixar espaço para entrar. Karma, talvez. Talvez a aventura do sentir, o calor de um corpo, de um outro alguém, fora de nós, que nos complete os dias, com a companhia necessária para enfrentar o que vem depois. Sentir-te como parte de um caminho. 
Quero caminhar contigo. Ouvir o que resta da natureza e tentar registá-lo em mim. Sentir o que é ser. Quero ver cascatas e sentir o rio correr no seu leito. Uma viagem fotográfica por entre serras e cascatas. Uma chegada ao nosso estado de espírito tanto desejado. O que faremos com os entretantos é o que realmente importa. Chegar ao destino, correr com a coragem de o alcançar, com a felicidade a fluir em nós.
"Nesta tarde não deixes que eu fale. Oferece-nos somente a deliciosa liberdade de sentir. As palavras trazem passados que não cabem na dimensão dos nossos sonhos. Essencialmente nunca te esqueças de ti própria[o], e comanda os movimentos, os teus e os meus, sempre, nessa sombra densa de seres. Nunca te esqueças; não digas o meu nome. Dá-me-te. (...)
Não percas a incandescência clandestina do desconhecido. O brilho do teu olhar começa a ser invadido por esse tremor, ora de receio ora de fascínio. Afinal, fazemos de conta de que é a primeira vez. Não se trata de um fingimento. Pelo menos não vejo como tal. Talvez uma procura do que nunca soubemos ser um para o outro. Mas chega, pois estaria a falar de um passado. Prefiro realmente imaginar que não nos conhecemos." Fernando Dinis, Dá-me-te
No meu corpo de mulher-criança revejo as marcas do meu corpo, pequenos sinais que julgava cicatrizes de uma vida, tal não foi o impacto da sua dor na minha essência. Hoje, mulher esquecida da criança, guerreira de uma vida de caminhante errante, olho para as cicatrizes maiores, talvez com algum desprezo, talvez a minimizar a dor, pensando que é apenas mais uma. Para não falar daquelas que não deixam cicatrizes no corpo, mas sim nas entranhas do nosso ser, aquelas que não podemos nem sabemos como mostrar ao outro, mas desejando ardentemente que ele as veja e as sinta. Que ele as conforte.
"in order to fall asleep
i have to imagine your body
crooked behind mine
spoon ladled into spoon
till i can hear your breath
i have to recite your name
till you answer and
we have a conversation
only then
can my mind
drift off to sleep
- pretend"
Rupi Kaur, The Sun and Her Flowers

A noite e as suas insónias.
A vontade de despertar o outro, de dizer aquelas palavras soltas que a noite desvenda, de sentir o seu responder na profundidade das estrelas, do abismo que as separa. O universo e os seus segredos, um tal deus que revela ao homem a sua manifestação divina pelo esplendor da sua criação, os seus astros e movimentos. Tudo na sua ordem natural, sendo apenas, tentando relembrar o momento do seu nascimento, tentando ignorar a sua efemeridade no tempo que nos transcende.

Sem comentários:

Enviar um comentário